Carta de Gibran conduz Mereb a traduzir “O profeta”

Opinião

Luís Rubira

Luís Rubira

Professor de Filosofia

Carta de Gibran conduz Mereb a traduzir “O profeta”

Por

Atualizado sábado,
08 de Outubro de 2025 às 09:28

Uma mútua afinidade, unificada na distante paisagem dos sentimentos e da memória, interligava Khalil Gibran e José Mereb: ambos nasceram em Bcharre, cidade localizada em região montanhosa no norte do Líbano. Desconhecendo-se durante os anos em que ali viveram, eles deixaram seu solo natal no último decênio do século 19. Na década de 1910, enquanto Gibran instalava-se definitivamente na América do Norte, Mereb também encontrava sua própria morada na América do Sul.

 

Tão logo tomou contato com as três primeiras obras escritas em árabe por Gibran (publicadas entre os anos de 1908 e 1914), Mereb lançou-se no projeto de tradução das mesmas. Estabelecendo correspondência com seu conterrâneo que residia em Nova Iorque, o tradutor radicado em Pelotas envia-lhe em 1920 a tradução de Lágrimas e Sorrisos e, em 1921, a de As Asas Mutiladas. Por fim, é no ano de 1927 que chega às mãos de Khalil Gibran a tradução de Os Espíritos insurgentes. Irmanados pelos mesmos afetos em todos esses anos, Gibran então escreve nova carta para Mereb:

 

“New York, 27 de Julho de 1927

 

Prezado irmão Mereb

Paz à tua formosa alma e ao teu grande coração.

Recebi, a cerca de duas semanas, um exemplar da tradução dos “Espíritos insurgentes” que, delicadamente, quisestes verter para a língua portuguesa e divulgá-la ao culto provo brasileiro. Gratíssimo estou, e muito mais, por notar que a tua dedicação visa exclusivamente as minhas obras, acrescentando assim à tua bondade passada, nova generosidade, perante o que me detenho admirado diante de ti, porém calado.

Queria escrever-te logo que recebi a bela tradução, mas não encontrei no momento, o teu endereço, e só hoje é que o achei por acaso entre os meus papeis; por isso tardei um pouco em te manifestar a minha sincera e imorredoura gratidão. Rogo, por isso, te dignes relevar-me a demora.

Dizem que a obra “O Profeta”, que editei em idioma inglês, já foi traduzida para o espanhol e para o português, porém, até agora, não vi nenhum exemplar de qualquer das duas traduções! Sabes, por acaso, alguma coisa a esse respeito? Ou percebeste alguma influência dessa tradução na América do Sul?

Tenho algumas referências da imprensa da Argentina, do Chile e do Brasil sobre “O Profeta”, mas não compreendi nelas o que é feito da tradução, na forma de um livro! Podes adiantar-me alguma coisa a respeito disso?

Escreve-me sempre, e crê-me que sou um dos admiradores do teu entusiasmo, da tua amizade e da tua lealdade. Deus é testemunha do que sinto e de quanto te sou devedor. Aceita, querido conterrâneo, os meus melhores cumprimentos, conjuntamente com as minhas afetuosas saudações. E que Deus te guarde para o teu leal amigo.

Gibran Khalil Gibran.”

Não temos conosco a carta de resposta de Mereb, mas é certo que na época não havia nenhuma tradução brasileira de O Profeta. É provável, no entanto, que o maior desafio para o tradutor libanês consistisse no fato de que esta obra de Gibran havia sido originalmente escrita em inglês. De todo o modo, é somente após o falecimento de Khalil Gibran, em 1931, que José Mereb emprega toda a sua energia na tradução de O Profeta. Publicada em 1935, a edição foi custeada pelo próprio tradutor, que espiritualmente prestava um último tributo a seu mestre e amigo espiritual.

Vindo a falecer no ano seguinte, os familiares de José Mereb dedicaram-lhe “uma missa em sufrágio de sua alma”, a qual foi realizada na “segunda-feira, 21 [de dezembro] 1936, às 9h, no altar de S. Francisco de Paula” (Jornal do Brasil, 20/12/1936, p.45). Sepultado em Pelotas, Mereb permaneceu até o final da vida afetivamente ligado à sua terra natal. Já os restos mortais de Khalil Gibran foram levados para Bcharre – mais precisamente para o antigo Mosteiro de Mar Sarkis, no qual, em 1935, foi inaugurado o Museu Gibran. É nele que se encontram os manuscritos, as pinturas, os móveis e documentos diversos de Khalil Gibran. E talvez nele estejam o conjunto de cartas que Khalil Gibran e José Mereb trocaram em vida, repousando em fraterna amizade neste lugar iluminado onde, há milênios, crescem os Cedros do Líbano – também conhecidos como Cedros de Deus.

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