Há um ano, o Rio Grande do Sul enfrentava a maior catástrofe climática de sua história. No começo, a enchente de 2024 parecia um problema isolado ou passageiro, mas acabou por atingir 471 municípios gaúchos — quase 95% de todas as cidades — expondo seu caráter devastador, com impactos visíveis até hoje. Por outro lado, o desastre natural revelou a força da solidariedade, unindo milhares de pessoas para enfrentar os alagamentos e devolver esperança e dignidade às famílias afetadas.
Noticiar ou relembrar o caos climático vivido no ano anterior não é uma tarefa fácil, mas necessária nos dois casos. E, também, tarefa do jornalismo. Do serviço de utilidade pública ao relatar os fatos, como o avanço das águas ou os alertas de risco, até o papel de memória e cobrança, ao revistar as promessas feitas, contar novas histórias e expor cicatrizes que permanecem.
Garantir que o tema não caia no esquecimento é um dever que o Jornal A Hora do Sul cumpre ao trazer uma série de três matérias publicadas a partir deste fim de semana: um ano depois da enchente, é tempo de lembrar, entender e evitar que os mesmos erros se repitam.
A origem da tragédia
Em 27 de abril, a chuva volumosa começou na Serra Gaúcha e região dos Vales do Taquari e do Rio Pardo, e perdurou por três semanas quase sem fim. Em várias cidades, choveu cerca de cinco vezes mais que o esperado para o período, e a sobrecarga do sistema hídrico foi a consequência. A água em excesso transformou rios em armadilhas, deixou um rastro de destruição pelas cidades e, junto, milhares de pessoas desalojadas.
Escoando por bacias hidrográficas conectadas entre si, o aguaceiro chegou ao Rio Jacuí e ao Guaíba. O encontro das águas em Porto Alegre provocou a maior enchente da história da capital gaúcha, superando a de 1941. Uma semana depois, a população que vive às margens da Lagoa dos Patos começou a sentir os efeitos da cheia. Os danos se alastraram em municípios da região Sul, como Pelotas, Rio Grande e São Lourenço do Sul. Ao todo, 183 pessoas morreram na tragédia e nenhuma vítima foi registrada no Sul do Estado.
Enchente de maio de 2024 no RS
Municípios afetados: 478
População impactada: 2.398.255 pessoas
Feridos: 806
Desaparecidos: 27
Óbitos confirmados: 183
Queda de empregos no RS – Maio de 2024
Agropecuária -4.332
Indústria -6.580
Construção -1.488
Comércio -5.411
Serviços -4.182
Saldo -21.993
Perdas econômicas
Rio Grande do Sul: R$ 58 bilhões
Outras unidades da federação: R$ 38,9 bilhões
Economia brasileira: R$ 97 bilhões
Histórias debaixo ‘água
O privilégio de compreender a intensidade do desastre com antecedência permitiu que a Zona Sul tivesse mais tempo de se preparar para receber as águas. A se somar a isso, no fim da enchente, a região se orgulhou de não ter registrado nenhuma fatalidade ou desaparecimento. Em contrapartida, as perdas materiais foram significativas, com casas invadidas, comércios destruídos e patrimônios pessoais irrecuperáveis.
Para os moradores do Laranjal, os momentos mais aterrorizantes foram as últimas horas do dia 8 de maio, quando a lagoa subiu e invadiu as ruas do bairro. Residente na rua Cacequi, o professor de História na UFPel, Eduardo Arriada, lembra que subestimou a enchente. Apaixonado por livros, ele tem coleção de 12 mil exemplares acomodada em um contêiner, e tudo foi posto em risco com o avanço das águas. “Às 22h [a água] estava na rua. Às 22h30min começou a entrar na garagem. Às 23h15min já estava dentro do contêiner. E continuou subindo”, recorda.
Antes disso, em uma tentativa de proteger o material, Arriada começou a movimentar o acervo das primeiras prateleiras. No entanto, a quantidade de obras foi um obstáculo na hora emergencial, e o professor decidiu abandonar a casa quando a água batia o joelho. Quatro dias depois, com a ajuda de pescadores, voltou de barco para resgatar alguns itens e verificar a situação do espaço. Segundo ele, foram perdidos cerca de 40 livros raros. “Dentro do todo, foi relativamente pouco”, avalia.
Em um mutirão de três dias, os livros que permaneceram intactos e livres da umidade foram retirados do contêiner e levados para o segundo andar da casa. Hoje, um ano depois, há um novo espaço construído sobre o antigo contêiner, mas ele admite que ainda não conseguiu reorganizar tudo o que foi deslocado durante o desastre.
Cenário traumático
Quando a água recuou de vez, foi possível identificar outros estragos no imóvel. O lar sempre havia sido um ambiente seguro e confortável, e foi inesperadamente tomado de assalto pelo barro. Além da limpeza, o prejuízo financeiro foi enorme, com perdas em quase todos os eletrodomésticos e móveis. Levantar tudo dentro de casa a 30 centímetros do chão não foi suficiente para manter a distância da água, que chegou a 1,20 metro. “No primeiro momento, dá vontade de largar tudo, sair daqui. Foi um trauma”, diz Arriada.
Transformação e aprendizado
Para quem cogitou não morar mais no Laranjal, hoje o sentimento é bem diferente. A dor e o receio de uma nova enchente foram convertidas em reconstrução, e permanecer no local onde a família se sente bem foi a decisão final. Mesmo assim, as lembranças de maio de 2024 levantam questões sobre a capacidade de prevenção de desastres na cidade e o nível de gerenciamento das questões ambientais.
“O que me incomoda mais não é a água, nem a enchente. Isso é da natureza. Agora, a gente pode saber lidar com a natureza. Pode-se fazer drenagens, pode-se construir canais melhores, desentupir os bueiros entupidos. […] E as pessoas responsáveis por isso precisam investir em estudos e trabalhos sérios para evitar outra situação dessas”, conclui Arriada.