Cinco anos de Covid-19: relatos de vidas transformadas pela pandemia

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Cinco anos de Covid-19: relatos de vidas transformadas pela pandemia

O marido da Rosane foi um dos 1,6 mil mortos pela doença em Pelotas; no mesmo período Maria Helena estava em coma após ter dado à luz ao primeiro filho e Sheila atuava na linha de frente da ala Covid

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Cinco anos de Covid-19: relatos de vidas transformadas pela pandemia
Maria Helena Borges deu à luz a João Pedro, que completou quatro anos na semana passada, enquanto estava infectada com Covid-19. (Foto: Jô Folha)

O primeiro caso de Covid-19 em Pelotas foi atestado no dia 25 de março, 14 dias depois da doença ter sido classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia. Quase cinco anos depois, a vida de muitas pessoas no município, assim como no mundo todo, ainda é marcada pelas transformações ocasionadas pelo vírus. Para essa grande parte da população a vida nunca mais será como era antes de março de 2020.

“No começo foi muito difícil porque a gente aprendeu sobre o Covid trabalhando na pandemia. Tivemos pacientes que eram familiares e amigos dos profissionais”, diz Sheila Strelow. A enfermeira e líder de equipe atuou na ala Covid do Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (HE-UFPel-Ebserh). No espaço, eram cerca de 40 pacientes internados, sendo 20 leitos de UTI. Sheila lembra que a parte mais difícil da internação era o isolamento dos familiares e a incerteza sobre a recuperação.

Pacientes sozinhos

“Isso me pegava muito porque eles estavam sozinhos, tu não estava internado segurando a mão de um familiar”. No momento da intubação, a enfermeira ficava responsável por fazer uma ligação de vídeo para os familiares dos pacientes. Ela relata que o momento era sempre de apreensão e de emoção, pois não se sabia se a pessoa iria acordar novamente. “Ali escutamos as mais diversas histórias, pedidos de desculpas, agradecimentos, porque eles tinham medo de não sobreviver, tu ouvia a pessoa se despedindo. Aquilo eu nunca vou esquecer”.

Sheila diz que o mais marcante foram os relatos dos pacientes. (Foto: Jô Folha)

Sheila viu muitas pessoas se recuperarem mesmo em casos graves e de intubação, no entanto, a enfermeira também viveu dias de perda de vários pacientes seguidos. “Um dia cheguei para trabalhar e tinham oito corpos aguardando a funerária”.

Distanciamento

Além da grande carga emocional e psicológica de trabalhar na linha de frente em uma pandemia, ao sair do hospital a enfermeira enfrentava o distanciamento de amigos e conhecidos, que ao temer se infectar não queriam contato com ela. “As pessoas queriam distância de mim, quando já era permitido sair de casa, diziam para mim: ‘eu prefiro que tu não venha’. Tinha o emocional de trabalhar e das pessoas não te quererem por perto”.

Atualmente, Sheila continua trabalhando no mesmo espaço da ala Covid do HE-UFPel. Hoje chamado Unidade de Precaução Adulto, o setor atende casos de pacientes que necessitam de medidas especiais de isolamento para prevenir a transmissão de infecções, como tuberculose, por exemplo. “Eu me sinto feliz por ter contribuído para salvar vidas”, diz sobre o trabalho na pandemia.

Uma das milhares de faltas diárias

A pandemia tirou o companheiro de mais de 20 anos de Rosana Brandão. Desde a declaração de pandemia, o casal de servidores públicos federais se tornou extremamente cauteloso por causa do medo da infecção. Em 2021, eles já estavam há mais de um ano trabalhando somente de home office e João Alberto Pedroso só saia para fazer compras no mercado.

A função era dele, devido ao grande cuidado que tomava para realizar as compras. Mesmo assim, pouco tempo antes de poder ser vacinado, Pedroso foi infectado. “Em abril de 2021, quando estava chegando a vacina, ele pegou [Covid], no dia 10 de abril”, conta Rosana. O Bola, apelido pelo qual João Alberto era conhecido por todos, foi internado no dia 16 de abril após piora dos sintomas da doença.

Rosane perdeu o marido João Alberto, o Bola. (Foto: Jô Folha)

Até aquele momento, ele não acreditava que poderia ter sido infectado por causa dos cuidados de prevenção que sempre adotou. “Eu disse para ele ‘tu está com Covid e não acho que tu esteja bem’. Eu tive que amarrar os sapatos dele para irmos para o hospital”.

Rosane, que trabalha na UFPel, acompanhava informações sobre o ciclo do vírus com o epidemiologista e coordenador de estudos sobre o coronavírus, Pedro Hallal. “E ele me disse ‘pelo relato que tu me dá, se ele passar de segunda-feira, não corre mais risco [de morrer]’.” O Bola faleceu às 16h daquela segunda-feira, dez dias depois de ter sido internado, por uma parada cardiorrespiratória em decorrência do agravamento dos sintomas da Covid-19. “De início eu pensei: não deve ser o Bola, eles devem ter se confundido, porque ele estava bem”.

Sem oportunidade de despedida

Rosane nunca mais viu o marido após a internação dele. Devido aos protocolos estabelecidos pelas funerárias para evitar a contaminação pela doença, ela não pode se despedir do Bola antes dele ser cremado. Quase quatro anos depois, a servidora pública ainda não sabe descrever o misto de sentimentos sobre a morte do companheiro.

“Tu fica sempre revoltada, não sei direito qual termo usar, mas [o sentimento] de que foi uma coisa que não era para ter acontecido, poderia ter sido evitada”, diz sobre a demora para a chegada das vacinas. Hoje ela segue fazendo a atividade preferida deles, viajar pelo mundo. “Nós viajamos muito e agora eu faço sozinha. Não uma falta lamentosa, de eu ficar me lamentando, mas é uma falta diária”.

Nascido na maternidade Covid

Na semana em que estava marcada a cesárea para Maria Helena Borges dar à luz ao primeiro filho, ela foi internada com falta de ar e testou positivo para a Covid. Após o parto ela ficou em coma por 20 dias e sem evolução no seu quadro de saúde, foi submetida a uma traqueostomia, procedimento cirúrgico no pescoço para abertura da traqueia com o propósito de melhorar a passagem de ar.

“No início eu acreditava que era só uma gripe e de um dia para o outro eu quase morri. Eu não tinha comorbidades, não tinha pressão alta, nada, e o meu pulmão ficou totalmente comprometido”. Somente 40 dias depois do parto, Maria Helena pode conhecer o filho João Pedro. “Não consegui amamentar, nem ter o primeiro contato”, diz.

Maria Helena só conheceu o filho 40 dias após o parto. (Foto: Jô Folha)

Enquanto tinha um recém-nascido para cuidar, a mãe também passava pela recuperação da cirurgia e das sequelas da Covid. “Eu tive que fazer fisioterapia, aprender a andar, a comer de novo”. No pescoço, a mulher carrega a cicatriz da cirurgia que salvou a sua vida e a única sequela é uma rouquidão na voz. O pequeno João Pedro fez quatro anos de idade na última semana e Maria Helena acredita que poder acompanhar o crescimento do filho é um milagre. “Não tem outra explicação a não ser isso. Só temos a agradecer e celebrar”.

Diante do controle da disseminação do coronavírus, o fim da pandemia foi decretado pela OMS em maio de 2023. Mesmo assim, dezenas de pessoas continuam sendo infectadas.

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