O Laboratório Social de Administração da Justiça, Conflitos e Tecnologia (LSd) da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), lança nesta quinta-feira (11) o terceiro Boletim Técnico voltado à violência contra mulher, com dados alarmantes sobre o descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência (MPUs). Segundo o Atlas da Violência 2025, em 2024, 18% das medidas concedidas no Brasil foram violadas, mas na Região Sul o problema assume proporções ainda maiores: Santa Catarina chega a 26%, o Rio Grande do Sul ultrapassa 23% e o Paraná gira em torno de 22%.
O estudo assinado pelo professor e coordenador do LSd, Aknaton Toczek Souza, em parceria com as pesquisadoras Raíssa Ferreira Miranda, Ana Luiza Marcos Schuch e Valeria Villalba Soares de Oliveira, revela que justamente onde há maior formalização das medidas, cresce o número de casos em que o agressor volta a se aproximar da vítima, mesmo sob ordem judicial. Na Zona Sul, entre 2022 e 2024, o número de registros de descumprimento subiu de 847 para 1.239, enquanto no RS o total passou de 8.553 para 11.943. Isso significa que, de forma estável, uma em cada dez ocorrências estaduais está na região.
“O que esses dados demonstram é que só a medida protetiva não dá conta. Ela precisa ser tratada como ponto de partida, não como solução final”, destaca Souza. Para ele, ainda persiste no país “um fetiche pela lei”, como se tipos penais e aumento de penas fossem suficientes para conter comportamentos que “não se baseiam em cálculo racional, mas em estruturas culturais de misoginia e controle”.
Atualmente, 802 medidas de proteção estão vigentes em Pelotas e 14 réus seguem monitorados pelo Juizado da Violência Doméstica. De acordo com a titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), delegada Márcia Chiviacowsky, a violação da ordem judicial é crime, com pena de três meses a dois anos. O uso da tornozeleira, para ela, é mais um meio de proteção da vítima. “Forma de proteção extremamente eficaz, pois ambos são monitorados de forma ininterrupta”, destaca.
80% dos casos em cinco municípios
Segundo o Boletim Técnico, de 2022 a 2024, Pelotas, Rio Grande, Bagé, Santa Vitória do Palmar e São Lourenço do Sul reuniram cerca de 75% das vítimas da região. Em 2024, esse índice superou 80%, indicando forte concentração do fenômeno em polos urbanos e municípios da faixa litorânea.
Diagnóstico
Com 502 vítimas em 2024, Pelotas responde por quase 40% de todos os descumprimentos regionais. Os bairros Centro (18,5%), Areal (14,9%), Fragata e Três Vendas (ambos com 11,2%) lideram os registros. A reportagem tentou dados atualizados de 2025, mas não teve retorno.
Pelo estudo, quase 49% das violações ocorreram dentro da residência da vítima, e mais de 60% entre a tarde e o início da noite, horários de maior circulação familiar. Há incidência relevante também em via pública, sugerindo abordagens durante deslocamentos e rotinas cotidianas.
Para o professor, esses crimes derivam de um modelo cultural de masculinidade que legitima o controle e a violência. “Sem atacar a origem, a formação dessa sociabilidade masculina, a lei sozinha não sustenta proteção.” O Boletim Técnico completo pode ser acessado pelo site do arenasociologica.com.
Para o pesquisador, três eixos são indispensáveis para aumentar a eficácia das medidas:
- Resposta rápida às ocorrências de descumprimento.
- Presença territorial das políticas públicas nos bairros de maior incidência.
- Ampliação da rede de proteção, garantindo acolhimento, linhas de fuga e acesso à saúde, assistência e transporte.
Mais que números: um padrão de risco
As violações de medidas protetivas expõem uma combinação de fatores: territorialidade, rotina feminina, fragilidade da rede pública e persistência de padrões culturais machistas. Para os pesquisadores, na Zona Sul, e especialmente em Pelotas, o fenômeno se desenha com nitidez: as mulheres seguem denunciando mais, mas o Estado ainda não responde na velocidade necessária. Os dados indicam que o risco não é pontual, mas estrutural. E apontam para um desafio central: transformar proteção legal em proteção real.
Não Maquia, denuncie
Em meio ao avanço dos casos, a Secretaria Estadual da Mulher lançou a campanha Não Maquia e Denuncie, voltada a estimular a identificação e a denúncia da violência ainda em seus primeiros sinais. A secretária estadual Fábia Richter, que falou ao programa Acorda Zona Sul da Rádio Pelotense, destaca que a agressão física “nunca começa pela violência física, mas por ataques morais e psicológicos”. Para ela, a mudança cultural precisa alcançar homens e mulheres.
“Durante décadas, dissemos para as mulheres que elas podiam ser o que quisessem, mas não preparamos os homens para conviver com essas mulheres”, afirma. “Há uma cobrança social para que o homem seja provedor, forte, que não demonstre fragilidade. Isso alimenta modelos que explodem em violência quando a mulher diz ‘não’.”
Segundo Fábia, 70% das mulheres que morreram no Estado não tinham denunciado. Entre os motivos, estão a insegurança, a vergonha e o medo de serem responsabilizadas pelo conflito. Ela reforça que a sociedade precisa assumir corresponsabilidade: vizinhos, colegas e familiares são peças-chave na rede de apoio. “A denúncia é extremamente difícil. Essa mulher precisa de cuidado e vínculo. E esse homem, muitas vezes perdido, também precisa ser orientado.”
Feriados prolongados
A secretária alerta para períodos de maior risco, como feriados prolongados, que historicamente registram picos de violência, como em abril em que Fábia citou como “Páscoa sangrenta” no Rio Grande do Sul. “O final de ano tende a ser igualmente delicado”, afirma.
