Referência nacional, o Remar para o Futuro atingiu uma década de história no dia 5. A data chega no mesmo mês em que a tragédia de outubro de 2024 completa um ano. Desde o acidente que vitimou sete atletas e o coordenador técnico Oguener Tissot, além do motorista da van que os trazia de São Paulo, essa dualidade entre a importância de fortalecer o legado e a dor da saudade permeia o dia a dia do projeto.
O processo de reconstrução é marcado por dificuldades financeiras e estruturais. Os recursos oriundos dos cofres municipais, que eram de cerca de R$ 11 mil mensais, cessaram depois do acidente. O programa recebeu uma verba de R$ 754 mil do governo federal e passou a contar com benefícios do Pró-Esporte do governo estadual, por meio de empresas parceiras, mas a luta para manter as atividades continua.
“Com o dinheiro da prefeitura, a gente conseguia pagar inscrições para competições, transporte, aluguel de barco. Quando um atleta vai competir, precisa ter um barco e se inscrever”, resume a secretária executiva do Remar para o Futuro, Anelita del Vecchio. Esse cenário existe porque o recurso do Pró-Esporte é uma “verba fechada”, ou seja, serviu para custos de voo, alimentação e hospedagem para o Brasileiro de Barcos Longos realizado no Rio de Janeiro no início deste mês.

Entre outubro e novembro, o Remar enviará delegação a Porto Alegre para o Brasileiro de Jovens Talentos e Copa Sul-Sudeste (Foto: Jô Folha)
Entre outubro e novembro, o Remar enviará delegação a Porto Alegre para o Brasileiro de Jovens Talentos e Copa Sul-Sudeste. Anelita explica que o aspecto orçamentário segue sendo incerto para essa competição. “Se tivesse o dinheiro da prefeitura, teria R$ 3 mil para ir e voltar. Não tenho o dinheiro dos lanches deles”. As partes ainda conversam. “É a primeira vez que a gente está tendo essa dificuldade burocrática. São negociações. Eles ainda estão avaliando, estruturando. Só falta uma assinatura”, completa.
A prefeitura de Pelotas informou em nota que “o município se mantém à disposição para manter e aprofundar o diálogo, além de apoiar o projeto desde que com os ajustes necessários para ampliar seu alcance social, pedagógico e educacional em consonância com as prioridades da rede municipal de ensino”. A reportagem questionou quais seriam os ajustes citados. Via assessoria de comunicação, a prefeitura enviou um texto que está publicado na íntegra ao fim desta matéria.
Desafios, visibilidade e parcerias
Sem Tissot, o coordenador geral do projeto, Fabrício Boscolo, tomou a frente da busca pela solução de vários problemas. “Os desafios desde a tragédia foram diversos, desde o contexto burocrático, administrativo, didático, pedagógico, psicológico, físico e social”, afirma. “Em função da história do projeto, do impacto na vida das pessoas e do acolhimento comunitário, esses desafios vêm sendo superados um a um”.
Após a tragédia, com a inclusão no Pró-Esporte, as empresas Unimed, Biscoitos Zezé, Yller, Biri Refrigerantes e Arrozeira Adib Peixoto se tornaram parceiras. Interinstitucional, o Remar tem como copartícipes a UFPel (via Esef), a prefeitura de Pelotas e o Centro Português 1º de Dezembro, clube ao qual pertence a sede Aníbal Vidal, às margens do arroio Pelotas, onde ocorrem as atividades do projeto.
Até outubro de 2024, por meio da Academia de Remo Tissot, com CNPJ próprio, Oguener recebia os repasses e os transferia para o projeto. Desde o acidente, outra mudança foi a criação da Associação Remar para o Futuro Oguener Tissot. Mas a fundação da entidade já era trabalhada anteriormente, com a intenção de facilitar as etapas burocráticas da captação de recursos.

Desde 2015, quase mil atletas já passaram pelo Remar. Hoje, vários estão em alguns dos principais clubes do remo brasileiro, tendo acumulado convocações para a seleção brasileira em diferentes categorias e conquistado títulos dentro e fora do país (Foto: Jô Folha)
Captação e talentos
Desde 2015, quase mil atletas já passaram pelo Remar. Hoje, vários estão em alguns dos principais clubes do país, tendo acumulado convocações para a seleção brasileira em diferentes categorias e conquistado títulos dentro e fora do país. Piedro Tuchtenhagen, Maria Fuhrmann, Mariana Macedo e Ana Julia Ferreira estão no Flamengo; Shaiane Ucker, Facundo Mezquita e Evelyn Cardoso no Grêmio Náutico União, de Porto Alegre; Robson Radmann no América, de Blumenau (SC).
Ex-atleta do Remar e hoje treinador da equipe, Davi Rubira enfatiza que o projeto integra o Vem Ser Pelotas, da Esef/UFPel, que coordena a captação de atletas em escolas municipais de Pelotas. O trabalho leva em conta as características físicas dos jovens, encaminhando-os para programas dos esportes em que melhor se encaixam.
“[Vem Ser Pelotas] Vai nas escolas com estagiários e bolsistas, principalmente da Esef, em busca da captação de talentos. Faz diversos testes, com medidas antropométricas das crianças e designam para as modalidades”, explica. Para remadores, os requisitos são altura (mínimo de 1,79m aos 14 anos para meninos e 1,74m na mesma idade para meninas) e a aprovação em testes de potência.
Sem parar
Há quatro anos no Remar, campeã sul-americana sub-19 na modalidade double skiff com a seleção brasileira e integrante da delegação que representou o Centro Português no Brasileiro de Barcos Longos ainda neste mês, Brenda Madruga perdeu o namorado Henry Fontoura Guimarães na tragédia de 2024. Ela lamenta que o projeto tenha ganhado reconhecimento amplo em função do acidente e não do sucesso social e esportivo.
“O que me chateia é como as pessoas enxergam o projeto. As pessoas começaram a conhecer por causa do acidente, e isso me deixa muito triste porque o projeto desenvolveu atletas incríveis. Muitos foram para mundiais, sul-americanos e pan-americanos”, diz, citando um caso ocorrido justamente na viagem de volta do Rio de Janeiro.
“A essência do Remar para o Futuro e do Oguener nunca foi parar. A decisão de continuar mostra a essência. Agora vamos virar a página, seguir o caminho. Muita gente falou que tinha que parar, só que isso não é a característica do projeto. Nunca vai parar”.
Nove vidas perdidas
No acidente ocorrido na BR-376, em Guaratuba (PR), perderam a vida os atletas Samuel Benites Lopes, 15 anos; Henry Fontoura Guimarães, 17; João Pedro Kerchiner, 17; Helen Belony Centeno, 20; Nicole Colella da Cruz, 15; Angel Souto Vidal, 16; e Vitor Fernandes Camargo, 17, além de Oguener, 43, e do motorista da van, Ricardo Leal da Cunha, 52.
A delegação do projeto pelotense, fundado em 2015 e ligado à prefeitura e à UFPel, retornava de São Paulo. Na capital paulista, o grupo disputou o Campeonato Brasileiro Unificado de Remo. Os atletas do Remar conquistaram um total de sete medalhas (duas de ouro, três de prata e duas de bronze).
Comunicado da prefeitura de Pelotas
“Como de praxe, os convênios pressupõem responsabilidades compartilhadas entre os entes envolvidos, exigindo o cumprimento de critérios técnicos, administrativos e legais que assegurem a boa aplicação dos recursos públicos e a efetividade das ações propostas.
Sendo assim, a prefeitura, após pareceres técnicos emitidos pelas áreas competentes, indicou a necessidade de ajustes em aspectos fundamentais do projeto apresentado, especialmente quanto à abrangência da proposta, aos critérios de inclusão e permanência dos alunos e a questões pedagógicas relacionadas à avaliação de aprendizagem e impacto social da iniciativa.
A gestão municipal reafirma seu compromisso com a transparência, a eficiência e a responsabilidade no uso dos recursos públicos, assegurando que todas as parcerias e convênios firmados estejam alinhados aos princípios administrativos e às prioridades estratégicas da administração pública. A prefeitura permanece aberta ao diálogo e reafirma que sua atuação está pautada em critérios técnicos, mas também em uma visão comprometida com a justiça social, a valorização da educação pública e o desenvolvimento integral dos cidadãos”.