Em alguns bairros de Pelotas, basta o sol aparecer para que as ruas ganhem vida. Crianças de bicicleta, correndo, jogando bola ou brincando de pega-pega lembram uma infância que parece ter ficado no passado, mas que ainda resiste. “A gente gosta de brincar na rua”, dizem, entre risadas, os pequenos alunos da Escola Almirante Raphael Brusque, da Colônia de Pescadores Z-3, que aprenderam a andar sem rodinhas e a lidar com os joelhos ralados como parte natural da aventura de crescer.
Enquanto muitas famílias enfrentam o desafio de equilibrar o tempo das telas, as crianças que moram em bairros mais afastados do centro urbano parecem viver em outro ritmo. “Elas têm um ambiente favorável ao brincar”, explica a professora Silvana Elizabeth Borges Porciúncula, que coordena projetos de horta e compostagem na escola. “A gente trabalha o resgate das brincadeiras antigas. Elas plantam, cuidam do espaço e passam boa parte do tempo ao ar livre. Isso reflete diretamente na saúde física e mental”, destaca.
A cena contrasta com a realidade de grande parte das crianças brasileiras, expostas desde cedo ao uso excessivo de celulares, tablets e televisores. Segundo especialistas, o desafio da geração atual é encontrar o equilíbrio entre o inevitável avanço da tecnologia e a necessidade de manter o corpo e a mente em movimento.
“Vivemos na era do excesso de estímulos”, analisa a psicóloga Roberta Barbosa. “Os pais precisam estar conectados ao mundo, mas acabam, muitas vezes, desconectados dos filhos. Por um lado, há uma valorização da infância, mas por outro, uma carência de vínculos reais.” Para ela, o maior desafio está em proteger as crianças sem isolá-las, ensinando-as a conviver com a tecnologia de forma saudável.
Mãos na terra, pés na grama
Uma das formas encontradas pela prefeitura de Pelotas, através da Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude, para conectar alunos das escolas municipais com atividades lúdicas, foi levá-las até o Parque Museu da Baronesa. As tardes de recreação fizeram até adulto voltar a infância.
Para a especialista, o contexto social influencia, e muito, na forma como as crianças vivem a infância. “O recorte social interfere diretamente nos conflitos que uma criança pode enfrentar”, aponta Roberta. “Aquelas que vivem em situações de precariedade tendem a experimentar mais desamparo. Mas, por outro lado, um ambiente com vínculos afetivos e espaço para o brincar pode ser altamente produtivo, gerando mais resiliência e alegria genuína.”
As histórias de Murício Rosa Gonçalves, seis anos, com os colegas Andrei e Anthony, os dois com sete anos, revelam que brincar ainda é o melhor remédio. “É muito bom. Às vezes eu caio da bicicleta, mas depois levanto e continuo”, conta ele, com orgulho do joelho esfolado. Entre risadas, as crianças defendem que “tem que ir pra rua”, mesmo que o mundo, lá fora, pareça cada vez mais dentro das telas.
Desafios modernos da saúde infantil
O psicólogo da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Tharso Meyer, lembra que a infância saudável vai muito além da ausência de doenças. “Ela envolve o desenvolvimento biopsicossocial, que inclui alimentação, sono, atividade física, vínculos familiares, saúde mental e educação. Tudo isso fica mais complexo quando as famílias têm pouco tempo para si mesmas e para os filhos.”
Segundo Meyer, o fortalecimento do vínculo entre pais e filhos é um fator essencial de proteção emocional. “O vínculo seguro é a base da autorregulação e da autoestima. E ele se constrói na convivência, com brincadeiras, conversas e pequenas rotinas compartilhadas.” Ele recomenda que pais retomem práticas simples, como jogos de tabuleiro, leitura e brincadeiras ao ar livre. “Essas experiências ajudam a criança a se sentir vista e amada.”
Obesidade infantil e sedentarismo
A professora de Pediatria e epidemiologista na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Elaine Pinto Albernaz, faz um alerta importante: além das questões emocionais, a saúde física das crianças enfrenta um inimigo silencioso: o sedentarismo. Nas últimas décadas, a obesidade infantil aumentou de forma preocupante no Brasil e no mundo. Crianças com excesso de peso têm mais chances de se tornarem adultos obesos e de desenvolverem doenças crônicas como hipertensão, diabetes e problemas ortopédicos.
“Crianças obesas muitas vezes sofrem com baixa autoestima que pode impactar o desempenho escolar, levar à ansiedade e depressão, e também à exclusão de brincadeiras e atividades em grupo e ao bullying”, comenta a professora. Por isso, para a especialista, é fundamental estimular a inclusão nas brincadeiras, tanto na escola quanto na vizinhança. “O uso de tela também deve ser controlado. Crianças que fazem as refeições olhando para uma tela podem perder a noção de saciedade e, muitas vezes, substituem horas de lazer, onde poderiam estar brincando, pelas telas”, explica.
A recomendação atual é que se deve evitar a exposição de crianças menores de dois anos às telas e, entre dois e cinco anos, limitar o tempo de telas ao máximo de uma hora/dia, sempre com supervisão de um cuidador. Para crianças com idades entre seis e dez anos, o tempo máximo é de uma a duas horas/dia, sempre com supervisão. “Na prevenção da obesidade, o aleitamento materno tem papel fundamental, assim como uma alimentação saudável, evitando alimentos ultraprocessados, refrigerantes e bebidas açucaradas”.
Vacinação e prevenção
Outro ponto de atenção, lembrado pela professora, é a queda nas coberturas vacinais, que ainda estão abaixo do ideal, mesmo com alguma recuperação em relação a 2024. “A vacinação é uma das ferramentas mais eficazes para garantir a saúde infantil. Exemplos como a erradicação da poliomielite e redução das meningites mostram o impacto das vacinas”.
Vínculos
Os especialistas apontam a brincadeira como papel fundamental no desenvolvimento das crianças e na prevenção de doenças. “Ele já começa quando conversamos e cantamos para o bebê na hora do banho ou ao colocar para dormir. O olhar e a presença da mãe, do pai ou do cuidador é uma fonte de estímulo para o desenvolvimento do bebê e não podem ser substituídos por telas”, aponta a pediatra.
Aprender as habilidades através de brincadeiras, é uma das formas mais saudáveis e prazerosas e muitas ficarão na nossa memória afetiva. Quem garante são os colegas da escola Almirante Raphael Brusque, que nem sabem como aprenderam a brincar de pega-pega. Apenas brincam. “O importante é que a brincadeira ocorra e seja segura, se houver brinquedos, estes devem ser de acordo com a faixa etária da criança. E, quando necessário, usar equipamento de proteção, como usar capacete para andar de bicicleta, por exemplo.
Os especialistas lembram ainda de práticas simples que ajudam a garantir o desenvolvimento saudável:
- Alimentação equilibrada: frutas, verduras e refeições em família fortalecem vínculos e hábitos.
- Sono regular: o descanso adequado melhora o crescimento e o aprendizado.
- Hidratação e movimento: água, esportes e brincadeiras reduzem o risco de doenças.
- Limite às telas: equilíbrio e supervisão são palavras-chave.
- Afeto e rotina: amor, diálogo e previsibilidade ajudam a organizar o emocional infantil.