Para uma vida saudável e sociável sem glúten

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Para uma vida saudável e sociável sem glúten

Celíacos de Pelotas se unem para propagar informações sobre a doença e lançar alternativas para quem precisa restringir a alimentação

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Atualizado domingo,
18 de Maio de 2025 às 13:53

Para uma vida saudável e sociável sem glúten
Elisa diz que início da dieta foi difícil, mas hoje está adaptada. (Foto: Cintia Piegas)

É possível viver sem glúten? Sim. É possível, difícil, tem um custo maior, mas nada comparado a não sentir os efeitos que a proteína causa no organismo de um celíaco. No Brasil, estima-se que existam cerca de dois milhões de pessoas com doença celíaca, sendo que a grande maioria (cerca de 80%) ainda não foi diagnosticada.

A doença celíaca é uma condição autoimune que causa uma reação ao glúten, uma proteína presente em cereais como trigo, cevada e centeio. Quem tem, sabe dos desafios e encontra alternativas em Pelotas para ter uma vida saudável e de inclusão.

Um grupo de celíacos se uniu para propagar as informações sobre a doença, que não requer apenas tirar o glúten da alimentação. A rotina vai além da marmita separada, mas da compreensão para a contaminação cruzada, o que pode interferir nas relações familiares e sociais. Algumas regras básicas precisam ser respeitadas pelos demais.

A química Fabiane Grecco da Silva Porto, 42, foi diagnosticada com a doença celíaca por acaso. Em 2017, a demora no reconhecimento da doença lhe causou problemas de saúde que requerem tratamento até os dias atuais.

Um deles é a alergia tardia a alguns alimentos e o supercrescimento bacteriano no intestino delgado, conhecido como SIBO. “Falar sobre o assunto por aqui ainda era raro”, relembra.

Em 2019 ela descobriu um grupo de WhatsApp que apoia os celíacos de Pelotas, onde se reconheceu nos outros. “Demora no diagnóstico da doença e problemas com diagnóstico inclusivo e, principalmente, e ainda mais grave, a falta de orientação adequada quanto a exclusão do glúten da dieta”, relata.

Elisa Mendes, 40, é formada em jornalismo e passou por momentos difíceis durante a gravidez. Ela conta que também demorou a receber o diagnóstico, pois antes disso passou por dermatologista para entender as manchas vermelhas na pele que chegam a sangrar.

“Quando meu estômago quase entrou para dentro literalmente, fiquei internada. Tive queda de cabelos. Mas foi a partir de exames de endoscopia e colonoscopia que descobri a doença”, conta. Ela admite que foi bem difícil o início da vida sem glúten, pois não foi apenas retirar a proteína da dieta.

Ela precisou se afastar de tudo que pudesse contaminar sua alimentação. Ou seja, para um celíaco, compartilhar uma faca que corta um pedaço de pão normal para um sem glúten é risco de sintomas.

A psicóloga Natália da Costa Dias passou a ter os sintomas em 2019. No período de investigação teve um misto de sentimentos, com alívio por saber o que iria enfrentar e frustração pelo diagnóstico de doença crônica.

“Relato isso, porque percebo o quanto o sofrimento, ansiedade e falta de diagnósticos aparecem muito antes que se perceba ou que se tenha a indicação correta”. Ela destaca que esta é uma doença sistêmica e autoimune, tendo um leque extenso de sintomas.

Diante da realidade

Fabiane é uma das administradoras do grupo de WhatsApp que conta com 144 membros e observa várias questões que dificultam o controle da doença celíaca no dia a dia.

Como por exemplo, a adesão à dieta sem glúten e sem contaminação cruzada – absolutamente necessária para a qualidade de vida do celíaco – que traz inúmeras limitações, como precisar comer sempre em casa ou levar marmita quando precisar comer fora, já que ainda são poucas as opções de alimentação segura na região.

Rede de apoio

A família precisa entender que a frase “um pedacinho não vai fazer mal” é a mais imprópria para quem tem restrição ao glúten. As celíacas contam que enfrentam diariamente situações que levam ao constrangimento, como quando parentes que se sentem ofendidos por fazer o bolo de cenoura só para a pessoa e a celíaca não vai poder comer.

“É a carência de compreensão por parte da família, do núcleo social, e do empresariado, sobre o cuidado com a contaminação cruzada, o que é vital. Outro fator muito presente é o impacto psicológico causado pela doença que limita muito a interação social do celíaco”, diz a empreendedora Valéria Cunha, 50.

Ela e o marido Jones Pires estavam descobrindo o ramo de alimentos quando ele foi diagnosticado com esteatose hepática, que é gordura no fígado, grau 3 e precisou tirar o glúten da dieta.

A partir de então foram várias experimentações com farinha de arroz, por exemplo, uma cozinha equipada com todos os eletrodomésticos, acessórios e utensílios de cozinha novos, e a corrida por produtos que tenham selo de descontaminação. “Conversamos com todos os fornecedores”, destaca Valéria.

Assim surgiu a Cucaria e Padaria No Glú, onde não só os celíacos são bem-vindos, mas todos aqueles que tenham algum tipo de alergia alimentar, pois basta uma conversa com as atendentes para saber o que é mais indicado para levar.

Preparação e manuseio requerem cuidados. (Foto: QZ7 Filmes)

No cardápio, cerveja, brigadeiro, quindim, coxinha de frango, quiche, muitas cucas e pães. Tem até a noite das pizzas e de massas e vinhos. O casal costuma reunir os celíacos para difundir o assunto, mas acreditam que a sociedade precisa ser informada sobre a doença, principalmente a rede escolar e os hospitais.

Onde buscar informações

A Associação de Celíacos do Brasil – Seção RS (Acelbra-RS) existe desde setembro de 1991 e foi inspirada por experiências da Argentina e Uruguai, como resposta à dificuldade de adesão ao tratamento da doença celíaca observada pela médica Ana Luiza Guedes, gastropediatra do Hospital de Clínicas, nos anos 1980.

Na época, a especialista criou um grupo para orientar pais e familiares sobre a dieta sem glúten, essencial ao tratamento. Atualmente a associação segue no caminho da conscientização, do acolhimento e da luta pelos direitos dos celíacos.

Uma das metas é chegar ao Poder Público, para que a partir de projetos de lei ou capacitações, nas universidades, fazendo pesquisas em diversas áreas, auxiliam pessoas com doença celíaca.

“Levando conscientização aos locais que nos atendem, como escolas, área da saúde pública e serviços de alimentação, poderemos ter um mundo mais seguro e inclusivo para as pessoas com doença celíaca”, diz a vice-presidente da região Sul da Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil, Fabiana Magnabosco de Vargas, que também é nutricionista.

Entrevista com especialista – Amanda Recuero (Médica gastroenterologista)

A população em geral é informada sobre a doença celíaca? Quando ela começou a ser tratada?

Ainda há muito desconhecimento por parte da população sobre a doença celíaca. Muitas pessoas ainda confundem a condição com uma simples intolerância ou moda alimentar.

A doença celíaca é uma condição autoimune séria, cuja primeira descrição clara foi em 1888 por Samuel Gee, que sugeriu que o tratamento dietético poderia ser benéfico.

Ao longo do século 20, avanços significativos foram feitos, incluindo a identificação do glúten como o componente dietético prejudicial em 1953 por Dicke, Weijers e van de Kamer.

Porém, só recentemente ela começou a ser mais amplamente reconhecida e diagnosticada, especialmente com a ampliação dos exames diagnósticos, aumento da prevalência da doença e crescimento do interesse pela alimentação sem glúten.

Como afeta o metabolismo e a saúde em geral?

A ingestão de glúten por quem tem doença celíaca provoca inflamação crônica no intestino delgado, levando à má absorção de nutrientes.

Os sintomas variam muito: algumas pessoas têm diarreia crônica, dor abdominal, distensão e perda de peso; outras apresentam quadros mais “silenciosos”, como anemia, osteopenia, infertilidade, cansaço e alterações de humor.

Em crianças, pode haver dificuldade no crescimento e atraso no desenvolvimento. Por isso, é uma doença que afeta o metabolismo de forma ampla, com impactos em todo o organismo.

É fácil chegar a um diagnóstico?

O diagnóstico pode ser desafiador em alguns casos. Primeiro, porque os sintomas são muito variados e muitas vezes atribuídos a outras causas. Segundo, porque exige que o médico busque ativamente a doença.

O teste sorológico de anticorpos IgA contra transglutaminase tecidual é recomendado como triagem inicial, seguido de endoscopia com biópsia do intestino delgado para confirmação.

Em crianças, a biópsia pode ser evitada em casos específicos. Apesar dos exames estarem disponíveis aqui em Pelotas, por exemplo, ainda vemos muitos pacientes peregrinando por anos até descobrirem a real causa de seus sintomas.

Existem outros fatores que podem influenciar a doença celíaca além da dieta?

Sim. Embora o consumo de glúten seja o gatilho principal, fatores genéticos têm um papel central – a maioria dos celíacos possuem os genes HLA-DQ2 ou DQ8. Além disso, infecções intestinais, alterações na microbiota intestinal e fatores ambientais ainda em estudo também podem influenciar o início da doença.

Estresse e desequilíbrios hormonais podem agravar os sintomas.

Como pode afetar a qualidade de vida?

A doença celíaca pode impactar significativamente a qualidade de vida, especialmente se não tratada adequadamente, levando a sintomas persistentes e complicações.

Os sintomas digestivos e sistêmicos afetam o dia a dia da pessoa, dificultam a produtividade no trabalho, o convívio social e, muitas vezes, geram medo e insegurança em relação à alimentação.

A adesão estrita à dieta sem glúten exige vigilância constante e pode ser emocionalmente desgastante. Mas com o diagnóstico correto e suporte adequado, é plenamente possível viver bem e com saúde.

Como lidar com a doença celíaca em diferentes fases da vida?

Cada fase exige uma abordagem personalizada e possui um ponto de atenção mais crítico. Na infância, o foco está na introdução alimentar e na educação da família e da escola. Existem escolas que não possuem nenhuma opção de lanche sem glúten.

Na adolescência há um maior risco de abandono da dieta, por pressão social. O acolhimento emocional é fundamental.

Já na vida adulta, o desafio é manter a adesão alimentar no ambiente profissional e social. Coisas como sair para jantar com amigos pode ser um verdadeiro transtorno para quem não está recebendo suporte nutricional e psicológico.

Na gravidez, a doença precisa estar bem controlada, pois a inflamação intestinal pode impactar a fertilidade e a saúde do bebê. Mulheres celíacas bem tratadas têm gestações normais.

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