Quase dez meses após a enchente em Pelotas, moradores de áreas atingidas ainda convivem com o trauma de terem desocupado suas residências, forçados pelo avanço das águas. A demora para a execução das obras previstas no Plano Rio Grande também não ajuda a restaurar a segurança da população, que teme por passar pela mesma situação novamente.
Segundo a prefeitura, ainda não foi feito o aporte de verbas estaduais para aplicação em obras e estudos, e alguns projetos cadastrados já constam como pré-aprovados. Caso se concretize a aprovação, o município garante que fará todo o possível para acelerar as tramitações necessárias e executar as obras o quanto antes.
Enquanto isso, o clima não dá sinais de trégua. Nesta semana, por exemplo, um temporal em Santa Vitória do Palmar foi responsável por 400 milímetros de chuva em apenas 24 horas. O volume de água representa o equivalente a um terço da média esperada no ano para a região, e deixou lavouras inteiras debaixo d’água. Isso acende um alerta importante para Pelotas: a cidade está preparada para outra cheia?
O que se tem até o momento?
Há um novo referencial histórico de elevação de níveis das águas. Os pontos mais vulneráveis estão mapeados e o Sanep possui projeto para todos eles, dependendo exclusivamente da liberação dos recursos para execução. O entendimento é que há a necessidade de ampliar a cota dos diques de proteção, tanto da Estrada do Engenho, quanto do Valverde, no Laranjal, para quatro metros.
Para o Laranjal, o projeto, orçado em R$ 30 milhões, inclui outras medidas importantes, como a construção de uma nova casa de bombas e o aprofundamento de importantes canais de macrodrenagem.
A nova casa de bombas Farroupilha passa pelas últimas revisões de projeto antes de iniciar as obras. Já há a empresa vencedora da licitação, a AGR Engenharia, e os recursos municipais para a construção. A ampliação da capacidade de bombeamento trará maior segurança à população de toda a bacia do entorno da rodoviária em períodos de chuvas intensas.
Além disso, as casas de bombas em funcionamento recebem novos equipamentos e aumentam o potencial de vazão das águas. Atualmente, são reforçadas as casas Anglo e Leste com novas bombas pluviais.
Na avaliação do Sanep, a concretização desses projetos deixará a cidade preparada para a realidade climática contemporânea, com volumes expressivos de chuva, em curtos períodos e com maior frequência.
Nada mais além do auxílio
Moradora das Doquinhas, próximo ao canal São Gonçalo, Suelen Veiga relata que enfrentou as enchentes de setembro de 2023 e de maio de 2024. Segundo ela, o auxílio emergencial oferecido pela prefeitura foi limitado e pontual, sem acompanhamento posterior ou soluções definitivas. Após a cheia, ela reconstruiu uma peça com o dinheiro do benefício, e levantou a estrutura em um nível mais alto para evitar perdas totais em caso de nova inundação. “Pelo menos os móveis eu não perco de novo”, explica.
Apesar dos esforços, a insegurança permanece. A falta de ações preventivas e de planejamento estrutural na região é alvo de críticas da mãe de dois filhos pequenos. Crianças que também têm medo constante de uma nova enchente. “Toda vez que chove, minha filha canta uma musiquinha: ‘Chuva, chuva, vai embora’. Ela entendeu tudo que aconteceu, sabe? É difícil.”
Estagnação e angústia
Um local que também sofreu na enchente do ano anterior foi a rua Comendador Mazza, onde vive e trabalha o comerciante Ayrton de Oliveira. Aos 67 anos, ele garante que a última foi a pior inundação que já enfrentou, pois perdeu uma quantidade enorme de mercadorias, além de precisar sair de casa. A apreensão dura até hoje e aumenta com as notícias sobre as mudanças climáticas. “Estou sempre esperando o pior”, assume.
O sentimento de medo ele atribui à falta de prevenção e obras de infraestrutura adequada para que o problema cesse de vez. Regularmente, com uma certa quantidade de chuva, a canaleta da rua transborda, e nada é feito. A Comendador Mazza é citada entre as obras de requalificação previstas no Plano Rio Grande, mas segundo o morador, não há sinais de execução na região.

Rua Comendador Mazza está no Plano Rio Grande, mas obras ainda não começaram (Foto: Jô Folha)
Eventos climáticos
O integrante do Comitê Científico de Adaptação e Resiliência Climática e professor da UFPel Marcelo Alonso projeta um cenário de maior probabilidade de fenômenos meteorológicos extremos. De acordo com o observatório Copernicus, 2024 foi o ano mais quente já registrado, sendo o primeiro a ultrapassar 1,5°C de aquecimento em relação ao período de 1850 a 1900, alcançando 1,6°C.
Na última apresentação do professor Alonso, no Seminário “A Ciência no Enfrentamento ao Desastre de 2024 no RS: da emergência à reconstrução”, ele destacou um aumento de 15 a 20% na intensidade e na frequência de eventos extremos, como chuvas fortes ou ondas de calor, quando a temperatura média global sobe 1°C.
Os padrões de circulação do ar, que variam de pequena a grande escala no espaço e no tempo, desempenham um papel fundamental na ocorrência de eventos extremos na Região Sul. Fenômenos como o El Niño, que aquece as águas da superfície do Oceano Pacífico Equatorial, e o La Niña, que faz o oposto, resfriando essas águas, influenciam diretamente o regime de chuvas no Rio Grande do Sul.