No coração da zona rural de Pelotas, onde o perfume de doce no tacho ainda encontra o silêncio antigo das vinícolas, o Museu Gruppelli segue cumprindo um papel que ultrapassa o de guardião de objetos: ali se conserva um modo de existir. Primeiro museu da zona rural, inaugurado em 30 de outubro de 1998, ele nasceu da vontade da comunidade de preservar as histórias das famílias que moldaram a Colônia Maciel, na Serra dos Tapes, e, até hoje é sustentado pela mesma força coletiva que o ergueu.
Entre enxurradas, festas e memórias, o Museu, desde o final do ano passado, está reaberto para visitação. Instalado no prédio que servia de vinícola e hospedaria, em 1930, a entidade abriga atualmente um acervo de cerca de dois mil objetos.
São dez cenários que retratam modos de vida e trabalho locais, como a barbearia de Vicente Ferrari e do João Petit Dias, o consultório dentário e o armazém dos Gruppelli, polos de sociabilidade, troca de notícias e encontros comunitários. Entre os objetos com narrativas marcantes, destaca-se a carroça do senhor Weber, usada para trabalho, passeio e, simbolicamente, para transportar seu próprio caixão no funeral.
O Museu têm três fundadores, Ricardo Gruppelli proprietário da casa e do armazém que leva o nome da família, a professora Neiva Acosta Vieira, que morreu no ano passado, e o fotógrafo Neco Tavares. “Organizaram o museu a partir de uma perspectiva deles”, relembra o professor José Paulo Siefert Brahm, coordenador do curso de Bacharelado em Museologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), atual coordenador da equipe multidisciplinar que ajuda a cuidar da entidade.
Dez anos depois de fundado, em 2008, eles perceberam que o museu necessitava de um caráter mais técnico e científico. A professora Neiva entrou em contato com o curso de Museologia procurando esse apoio.
Em 2023, Brahm passou a coordenar o projeto de extensão. A equipe reúne alunos e profissionais de Museologia, Conservação e Restauração, Artes, História e Arqueologia, oferecendo múltiplos olhares sobre o patrimônio.
Desafios enfrentados
Entre os principais desafios de se manter o Museu está o enfrentamento da enchentes. O algoz é o arroio Quilombo, que em 2016 se elevou tanto que causou o maior estrago visto até hoje. “Teve 1,20m de água aqui dentro, no dia 26 de março; 100% do acervo ficou tomado pela lama e pela água, perdemos muitos objetos, como por exemplo o nosso tacho, o que a gente tem hoje é outro”, relembra o museólogo, mestre Maurício André Maschke Pinheiro, morador da Maciel, que trabalha há dez anos de forma voluntária no Museu.
Nos últimos dois anos outras cheias do arroio atrasaram obras de reforma (financiadas pelo Procultura) e exigiram remontagens das exposições, sucessivas vezes. Como prevenção, a reserva técnica foi transferida para o andar superior. A comunidade também construiu um dique de pedra, solução por enquanto provisória.
Infraestrutura e finanças
Também há desafios na retomada da documentação museológica (catalogação) perdida numa enchente. Como o Museu é comunitário, a cada necessidade todo mundo do entorno ajuda. Nos últimos anos também têm sido feitos projetos para acesso de recursos públicos.
Há um projeto em andamento, financiado pelo Procultura Municipal, que visa recuperar o assoalho do segundo andar. A proposta é transformar o espaço em laboratório de museografia e sala para ações culturais e educativas, ampliando as atividades.
Paulo Brahm lembra que todo o esforço da comunidade tem sido para preservar essas memórias, mas também para fomentar o turismo local, que movimenta a produção gastronômica de toda a região, além da Maciel. O Museu funciona aos domingos e durante a semana recebe, por agendamento. A entrada é gratuita em ambos os casos e aceitam-se doações de valores.
Com a reabertura no ano final do passado, atrasada por causa da enchente de 2024, o objetivo é aproximar o Museu Gruppelli de outras comunidades, especialmente a urbana de Pelotas. Um dos entraves, segundo o coordenador, é a estrada da Maciel, nem sempre em boas condições. “As condições precárias dificultam o acesso de visitantes”, argumenta Brahm.
Calendário de eventos
Como uma forma de aproximar as pessoas do Museu foi proposto um calendário de eventos. Este ano foram realizadas as festas Junina, Noite Italiana e do Rievelsback (bolinho de batata alemão). As ações valorizam a cultura local, integram comunidades rural e urbana, estimulam a economia e dão uso prático ao patrimônio.
A próxima é a Kolonatale, que será realizado no dia 7 de dezembro. O evento terá almoço e chegada do Papai Noel. “Para continuar divulgando a região, valorizando, chamando mais público”, fala o professor.
Na contramão do esquecimento, o Museu Gruppelli abraça a vocação de ser arquivo e palco. Um espaço onde o turismo rural não é apenas um produto, é encontro com uma comunidade que faz da memória um modo de resistência.
