“É a escravidão, a página dos dramas horripilantes da nossa pátria, a condenação perpétua dos nossos antepassados! E nós ainda não sentimos o seu mal… ainda não feriram os nossos ouvidos os agudos gemidos das vítimas do cativeiro que repercutem por essas matas, onde a barbárie governa”. O trecho citado é da obra rara Um fruto da escravidão, de Boaventura Soares, publicado em Pelotas pela Tipografia da Livraria Americana, em 1884.
Logo no Prólogo, o autor da obra situa o leitor: “A Sociedade Literária 28 de Setembro, em Porto Alegre, deliberando promover um espetáculo, para com o produto dar liberdades a alguns escravos, incumbiu-me de escrever um drama abolicionista”. Boaventura Soares também menciona que embora tivesse “pouco cultivo intelectual”, aceitou a missão de escrever o drama, e assina o Prólogo indicando o local e a data: “Pelotas, 20 de março de 1884”. De fato, a peça foi encomendada na época por aquela Sociedade Literária que, ao lado de outras, buscava “aumentar o lastro das ideias republicanas, já em conflito ostensivo com o regime monárquico vigente”, tal como relata Athos Damasceno em seu monumental livro Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século XIX (Globo, 1956, p. 200).
Reparto com o leitor um resumo desta peça para teatro de Boaventura Soares, escrito pelo estudioso Antenor Fischer, no quinto volume de sua Antologia da Literatura Dramática do Rio Grande do Sul: “Eurico e Eduarda acolhem um órfão, de três anos, que é deixado à porta de sua casa. Esse órfão (Américo), mais tarde se ficará sabendo, é filho de Eurico com uma escrava. Américo, ao retornar de São Paulo (a ação da peça passa-se no Rio de Janeiro), onde passara cinco anos e de onde volta doutor, apaixona-se por Cecília, filha legítima de Eurico e Eduarda. O jogador e aristocrata Hemetério – que pretende salvar-se da falência total –, disputa-lhe a mão da moça. Para afastar Américo de seu caminho, não titubeia em caluniá-lo pessoalmente e pela imprensa. No fim da peça, quando Américo pede a Eurico a mão de sua filha, este lhe revela ser seu pai e, por conseguinte, que Cecília é sua irmã, o que torna impossível a união. O fim é trágico: Américo põe fim à própria vida, com um tiro” (Fischer Press, 2015, p. 50-51).
Nesta Antologia de Antenor Fischer constam transcritas algumas peças que defendem a abolição da escravatura em período republicano, entre elas Um Fruto da Escravidão, a qual foi disponibilizada online pelo Setor de Raros e Inéditos da Universidade de São Paulo em seu site: t.ly/Jg14a. Antenor Fischer também menciona que “Segundo Pedro Leite Villas-Bôas (1974, p. 486-7), Boaventura Soares nasceu em Pelotas, em 4 de agosto de 1854, e faleceu na mesma cidade, em 28 de julho de 1897”. Não sabemos, contudo, qual foi a fonte em que o exímio pesquisador Pedro Leite Villas-Boas se baseou (e que é repetida no livro de Ari Martins, 1978, p. 500), mas ao consultarmos os jornais da época, constata-se que Boaventura Soares não nasceu nem faleceu na cidade de Pelotas.
Em 3 de Julho de 1884, o jornal Pacotilha, do Estado do Maranhão, noticia: “O nosso comprovinciano Boaventura Soares, residente em Pelotas, no Rio Grande do Sul, acaba de publicar o drama abolicionista de sua lavra, intitulado – Um fruto da escravidão; ofereceu-nos um exemplar, que agradecemos”. É o mesmo jornal do Maranhão que publica em sua edição de 15 de Junho de 1885, a matéria intitulada “Boaventura Soares”, na qual lemos: “Bento Manoel Soares participa aos seus amigos que acaba de receber por telegrama a infausta notícia de falecimento de seu muito prezado mano Boaventura Soares, no Rio de Janeiro, no dia 9 do Corrente”. Tal informação também é confirmada um dia antes pelo jornal O Paiz, no Rio de Janeiro: “Faleceu ontem pela madrugada, no hospital de Misericórdia, o estudante do primeiro ano de medicina, Boaventura Soares. Era natural do Maranhão e só a custo de muita vocação e esforços conseguira matricular-se naquela escola; ficando doente, recolhera-se ao hospital, onde por fim sucumbiu”. E no próprio Rio Grande do Sul surge, no dia 18 de Junho de 1885, em notícia colocada na capa do jornal A Federação: “Faleceu no Rio de Janeiro o estudante do primeiro ano da Faculdade de Medicina Boaventura Soares, que estava em Pelotas como professor de um colégio particular”.
Muito resta a saber sobre Boaventura Soares, mas fato é que estamos diante de uma peça de teatro que foi publicada em Pelotas, e certamente nela escrita quatro anos antes da Abolição da Escravatura. Uma peça única, uma fonte histórica, que mereceria ser novamente encenada.
Nota: Fotografia de uma pessoa “negra com uma criança branca nas costas, na Bahia, em 1870. (Fotógrafo não identificado / Acervo Instituto Moreira Salles)”. Fonte: BBC News Brasil, Exposição em SP mostra vida dos escravos no Brasil, 20/11/2013.