Reconhecimento de Manoel Padeiro como um herói reafirma a identidade afro-gaúcha

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Reconhecimento de Manoel Padeiro como um herói reafirma a identidade afro-gaúcha

Líder quilombola, conhecido como “Zumbi dos Pampas”, tem trajetória cada vez mais reconhecida e estudada

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Atualizado sábado,
22 de Novembro de 2025 às 10:05

Reconhecimento de Manoel Padeiro como um herói reafirma a identidade afro-gaúcha
(Foto: Alisson Affonso)

Um líder negro insurgente, antes vilão na narrativa da elite branca, emerge do silêncio de quase dois séculos como o primeiro herói negro do Rio Grande do Sul. A figura de Manoel Padeiro, o “Zumbi dos Pampas”, e seu quilombo nômade na Serra dos Tapes, na Pelotas dos anos 1830, é hoje um pilar fundamental na construção de uma identidade afro-gaúcha de luta e resistência, um movimento que ressoa do passado até as atuais ações afirmativas.

O general Manoel Padeiro, como ficou conhecido, líder de um quilombo singular e exímio estrategista que aterrorizava charqueadas e fazendas na região de Pelotas, está no centro de um resgate que busca romper a invisibilidade imposta pela história oficial. O Projeto de Lei 86/2023, da deputada estadual Laura Sito (PT), reconheceu há dois anos o ex-escravizado como o primeiro herói negro do estado, uma iniciativa que, para a proponente, era a chance de proteger a memória de um protagonista de primeira linha no enfrentamento à escravidão.

Organização e resistência

A importância de Padeiro, contudo, nunca esteve totalmente perdida. O doutor em História Caiuá Cardoso Al Alam, coautor do livro Os calhambolas do general Manoel Padeiro: Práticas quilombolas na Serra dos Tapes (RS, Pelotas), em colaboração com os pesquisadores Natália Pinto e Paulo Roberto Moreira, destaca que a memória do quilombo Manoel Padeiro, embora inicialmente registrada sob a perspectiva branca e oficial da época, “nunca desapareceu da memória rebelada” do povo negro, mantendo-se viva em comunidades e terreiros.

Essa “memória rebelada” é o elo que conecta as lutas do passado às do presente. Professor da Universidade Federal do Pampa, campus Jaguarão, Al Alam, inspira-se no conceito de “quilombo” da historiadora Beatriz Nascimento, para defender esse formação comunitária como uma “estratégia contínua de organização e resistência” do povo negro. A luta de Padeiro, portanto, não era um evento isolado, mas uma inspiração constante que foi evocada, inclusive, no combate à  ditadura militar por grupos como o Palmares, do poeta gaúcho Oliveira Silveira, nas décadas de 1970 e 1980, que impulsionaram o reconhecimento do 20 de novembro, como uma data importante para os afrodescendentes.

(Foto: Alisson Affonso)

Para Al Alam a trajetória do “general” é muito maior do que Pelotas. “Essa experiência do quilombo do Manoel Padeiro passou por diferentes territórios”, diz. O pesquisador reforça essa ascendência além das fronteiras do município ao pontuar essas foram vivências históricas afro-gaúchas e não só afro-pelotenses.

Memória e identidade

A pró-reitora de Ações Afirmativas e Equidade da Universidade Federal de Pelotas, a pesquisadora Cláudia Daiane Garcia Molet, pós-doutora em História Social, corrobora essa visão, percebendo que há uma “memória coletiva” sobre Padeiro nas comunidades quilombolas e nas zonas da colônia de Pelotas, uma memória que a academia e o movimento social têm fortalecido. Ela afirma que a história de Padeiro “contribui para a formação da identidade afro-gaúcha há bastante tempo,” ressignificada a partir da década de 1970, quando a história começou a buscar narrativas que colocassem pessoas negras como sujeitos de própria história.

Para Daiane, Padeiro tem atravessado as narrativas orais. “Cada vez mais tem aparecido essa construção de uma identidade negra ancorada na figura de um herói negro, de um herói quilombolo daqui de Pelotas, principalmente a partir do momento que ele se torna oficialmente o primeiro herói negro do Rio Grande do Sul”, comenta a pesquisadora.

Uma luta coletiva

O movimento liderado por Manoel Padeiro era profundamente coletivo e hierarquizado, articulando homens e mulheres escravizados e libertos, além de contar com a ajuda de brancos pobres. De acordo com historiadores, o quilombo era “nômade” e atuava em guerrilha.

Para Caiuá Al Alam, o grande ponto de Padeiro é sua luta coletiva por “projetos de liberdade” e “projetos de cidadania”. O historiador alerta contra a reprodução do individualismo na perspectiva do movimento negro, defendendo que o grupo do Padeiro era um “coletivo bem atuante” que manejou redes de sociabilidade importantes na Serra dos Tapes.

O reconhecimento de Padeiro como herói é, para Al Alam, uma “grande conquista” que, paradoxalmente, expõe a faceta “extremamente racista” de um estado que negou e invisibilizou protagonismos negros fundamentais. “O Padeiro como um herói negro do estado é uma afirmação das lutas dos movimentos sociais negros que atravessam séculos e essas gerações estão conectadas por projetos de liberdade, de cidadania. A representatividade do Manoel Padeiro é isso, mesmo num grande ciclo de violências marcados pela escravidão. O povo negro nunca deixou de lutar e de construir seus projetos de liberdade. É para a gente pensar nos dias de hoje o quanto é importante estar irmanado à luta antirracista entre sujeitos negros e não negros, para afirmarmos um projeto de cidadania ampla e irrestrita e que tenha como ponto fundamental a luta contra o racismo e por reparação histórica”, fala Al Alam.

Das Américas

(Foto: Alisson Affonso)

A singularidade de Manoel Padeiro, ressalta Daiane Molet, o torna nacional e das Américas. Ele está inserido na mesma conjuntura de grandes levantes da década de 1830, como a Revolta dos Malês na Bahia, o que reafirma a luta do povo negro da diáspora no sul do Brasil. Sua história é uma afirmação das lutas contra o racismo e a opressão de um sistema capitalista que, na época, era balizado pela escravidão, destaca Al Alam.

O historiador ainda reforça que a história do estado gaúcho é alicerçada numa narrativa que negou e invisibilizou os protagonismos negros, fundamentais na construção desse território de fronteira. “A escravidão foi fundamental para se consolidar, inclusive, o Império Lusitano aqui na nossa região. O proto Rio Grande do Sul, esse território, nasceu vinculado à experiência de africanos e africanas. É um estado que no seu nascedouro contou com a participação contundente do povo negro”, argumenta.

Assim como o pesquisador, a pró-reitora afirma que a figura de Manoel Padeiro reforça uma “identidade negra positiva de luta, de liberdade e de busca constante por cidadania,” especialmente na Semana da Consciência Negra, uma data construída no Rio Grande do Sul para repensar a representação da população negra. “Ao celebrar Padeiro, a sociedade gaúcha celebra a persistência de um povo que “nunca deixou de lutar e de construir seus projetos de liberdade”.

Daiane Molet se dedica a pesquisar as formações quilombolas e a atuação protagonista dos negros litorâneos. “São quilombos que foram oriundos a partir de conquistas de terras no século 19, busco entender essas dinâmicas da Laguna dos Patos. Uma articulação para a gente pensar essas relações, e isso está muito em evidência nos últimos tempos para serem trabalhados dentro da sala de aula, nos espaços acadêmicos, na escola de samba, na memória coletiva das próprias comunidades quilombolas aqui de Pelotas e das demais que se vêem representadas na figura desse herói”, fala Daiane.

A Reafirmação na Cultura e Educação

O reconhecimento da importância de Manoel Padeiro vai além do Projeto de Lei. Diferentes iniciativas culturais e educacionais estão impulsionando sua figura, consolidando o fortalecimento da identidade afro-gaúcha:

  • Publicações: A segunda edição do livro Os calhambolas do general Manoel Padeiro: Práticas quilombolas na Serra dos Tapes (RS, Pelotas) (2020); a cartilha Educador Antirracista e o livro General Manoel Padeiro e Quilombo da Liberdade, de Tânia Rodrigues Tibério, que têm levado a história de Padeiro para as salas de aula.
  • Artes: roteiro de filme/série sob o título Os calhambolas do general Manoel Padeiro (2025), desenvolvimento por Duda Keiber e Alexandre Mattos Meireles, baseado em depoimentos e na historiografia, lançado em forma de livro pela Otroporto Associação Cultural, com ilustrações de Alisson Affonso e projeto gráfico de Valder Valeirão.
  • No Carnaval de 2026, a Escola de Samba Império da Baixada, de Pelotas, terá como enredo Os Zumbis dos Pampas Manoel Padeiro.
  • Há a proposição de uma estátua de Manoel Padeiro, feita pela deputada Laura Sito (PT), em Pelotas, possivelmente na praça Coronel Pedro Osório, um antigo pelourinho, que poderia ressignificar locais de trauma.

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