A aprovação do pacote anti-facção no Congresso Nacional, ainda precisando ser votada pelo Senado, pode ter efeito direto aqui na Zona Sul. De um lado, atende a uma cobrança antiga por mais rigor contra organizações criminosas que já não são mais “coisa de capital”: disputam território em bairros de Pelotas, Rio Grande e cidades vizinhas, controlam pontos de venda, transportes e parte da economia informal. A nova fase da Operação El Patrón é exemplo disso: o Gaeco/MPRS cumpriu 22 mandados de prisão preventiva em Pelotas, Capão do Leão e Camaquã, depois de identificar uma facção que movimentou mais de R$ 107 milhões com dinheiro do tráfico e da agiotagem, usando cerca de 200 contas bancárias e oito veículos para lavar capitais.
Em tese, a região tem perfil para se beneficiar de um marco mais duro: está em um corredor de rodovias importantes, perto de porto e fronteira, rota de passagem de cargas e de dinheiro. Investigações como a própria El Patrón já mostraram que não se trata só de “venda de droga na esquina”, mas de esquemas com aplicativos, rifas, apostas e microcrédito ilegal para reaplicar o lucro do tráfico.
Se PF, Polícia Civil e Brigada Militar tiverem equipe, tecnologia e integração, o endurecimento pode ajudar justamente a atingir esse caixa, bloquear contas, sequestrar bens e sufocar atividades empresariais usadas para lavagem, diminuindo a capacidade de recrutamento nas periferias. O risco é repetir o roteiro conhecido: o Brasil é craque em aprovar leis musculosas para um Estado que continua de perna fina.
Um ponto delicado do texto é o trecho que fala em “restringir a circulação de pessoas, bens e serviços”. No papel, a intenção é atingir ações típicas de facções que controlam território e impõem toque de recolher ou pedágio paralelo. Mas, dependendo de como governos e Ministérios Públicos interpretarem, essa porta pode se abrir também para situações de conflito social. E aqui não se trata só de ocupação de prédio ou ato de movimento social de esquerda: bloqueios de caminhões em rodovias, tratoraços e protestos que travam estradas entram no radar de qualquer leitura mais rígida. É um aviso que vale para todas as torcidas políticas.
A Zona Sul precisa, sim, de instrumentos mais eficazes contra o crime organizado, mas também de garantias de que esses instrumentos não vão se transformar em atalho para criminalizar qualquer tipo de manifestação mais dura, inclusive aquelas que, nos últimos anos, partiram de categorias econômicas com pouco hábito de ir às ruas e estradas.
A política do quarteirão
Pelotas sempre conviveu com a figura do “vereador do bairro”. Não o legislador, mas o síndico político da própria rua. É aquele que trata o orçamento como extensão do seu CEP: um palco para o evento da quadra, um apoio para o encontro local, uma obra pontual que rende três fotos e quatro agradecimentos nas redes. Já houve quem tivesse ambulância própria para resgates ou até trator para serviços gerais. Vereador que não formula política pública, ele administra pequenos afetos.
A ação do Ministério Público, revelada ontem, expõe o problema desse modelo quando ele vira engrenagem fixa do orçamento. Com emendas impositivas obrigatórias, parte da cidade passa a caminhar conforme a lógica do quarteirão: o dinheiro não segue a prioridade da cidade, segue a prioridade do vereador, que pode ser tão grandiosa quanto organizar mais uma festa ou tão específica quanto reformar a churrasqueira de uma associação. É a política de resultados mínimos apresentados como vitórias máximas. E aqui entra o ponto silencioso da história: quem recebe essas emendas também precisa estar atento, porque o MP vai avançar até o detalhe. Até o ponto de verificar, in loco, se aquilo que foi prometido realmente existe.
O vereador do bairro é a caricatura perfeita do “deputado da região”. Ambos confundem representação com propriedade. Um acha que é dono de quadras, o outro, dono de um mapa inteiro. Nenhum se vê como formulador de soluções estruturais, ambos se enxergam como distribuidores de pequenos alívios. A lógica é a mesma, a escala é que muda.
A diferença é que, quando o deputado da região brinca de ser proprietário do território, Brasília paga a conta. Quando o vereador do bairro faz o mesmo, quem paga é Pelotas, com o orçamento de verdade, aquele que deveria pensar a cidade inteira, não apenas o pedaço do mundo que rende aplauso rápido e voto seguro.