Casos raros e o diagnostico precoce

Corpo e Mente

Casos raros e o diagnostico precoce

Geneticista Roberto Giugliani falou sobre o cenário durante o 3º Encontro Comung e Casa dos Raros promovido pela UCPel

Por

Casos raros e o diagnostico precoce
(Foto: Stéfany Schuwartz)

A gestação de Ingrid Mattos Gonçalves, 32, psicopedagoga clínica, transcorreu de forma tranquila. Tudo indicava que o parto seria normal, mas a filha, Lara, nasceu de 36 semanas e alguns dias, em um procedimento cesariano. “Ela nasceu bem, não precisou ficar internada. Recebemos alta no outro dia”, lembra Ingrid. O que ela não imaginava é que, ainda na sala de parto, receberia a notícia de que a menina tinha uma má formação em um dos braços, algo que não havia sido identificado durante o pré-natal.

Lara é uma das crianças com doença rara, descoberta quando tinha três meses, em uma consulta com o geneticista. A indicação foi após uma internação e a suspeita da pediatra para alguma síndrome. “A médica observou algumas características diferentes: além da má formação do braço, o choro dela tinha um som diferente, as orelhas eram mais baixas, a palma da mão tinha uma linha só e ela tinha bastante pelos no corpo”, relata. O diagnóstico, porém, demorou a vir. “Foi um período de muita angústia. Cada médico levantava uma hipótese diferente. Só no segundo ou terceiro mês é que tivemos o diagnóstico”, revela.

Lara tem a Síndrome de Cornélia de Lange, uma condição genética rara que pode causar atraso no crescimento, anormalidades nos membros superiores, excesso de pelos, deficiência intelectual e problemas de visão, audição ou coração. “Mesmo já desconfiando que pudesse haver algo além da má formação, foi um choque. Eu não conhecia a síndrome e o que encontrava na internet era assustador”, diz Ingrid. “Parece que o chão se abre. Tu não sabe o que fazer, pra onde ir, e pensa que tudo que lê ali vai acontecer com o teu filho.”

Amenizar o drama enfrentado por Ingrid é o principal trabalho da Casa dos Raros, em Porto Alegre, principalmente no diagnóstico rápido e no acolhimento das famílias. O médico geneticista Roberto Giugliani, fundador da entidade e referência nacional na área, esteve na Universidade Católica de Pelotas (UCPel) durante um evento realizado pela primeira vez no município, promovido em parceria com o Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung). A proposta foi reunir profissionais e estudantes da área da saúde, além de familiares e comunidade em geral.

Em entrevista à Rádio Pelotense, Giugliani lembra que o termo “doença rara” pode enganar. “Elas são raras individualmente, mas muito frequentes em conjunto. A maioria é de origem genética e afeta o desenvolvimento em diferentes níveis. Nosso desafio é fazer com que o sistema de saúde esteja preparado para reconhecê-las e agir com agilidade”, destaca o médico. Segundo o especialista, estima-se que 13 milhões de brasileiros convivam com algum tipo de doença rara.

Lara teve diagnóstico aos três meses (Foto: Divulgação)

“O diagnóstico precoce muda tudo. Ele permite direcionar terapias, melhorar a qualidade de vida e evitar o sofrimento de pais e filhos que muitas vezes passam anos em busca de respostas”, destaca o geneticista. No caso da Lara, o diagnóstico foi através do olhar clínico, pois o hospital não solicitou teste genético, uma vez que as características da Cornélia são físicas. Ingrid conta que nesse momento, o apoio do pediatra foi essencial para que conseguisse reorganizar os pensamentos após o diagnóstico. “Ele foi além de médico. Foi um anjo que me colocou de volta no chão. Eu estava perdida, sem saber o que fazer, e ele foi me mostrando o caminho, acalmando dentro do possível.”

Atenção em Pelotas

A bióloga e professora da Universidade Católica de Pelotas, Gabriele Ghislani, responsável pela organização do evento, explica que a iniciativa contou com o engajamento de docentes e estudantes da UCPel e a iniciativa vai além de um tema científico: as doenças raras exigem sensibilidade e empatia. “Os alunos precisam entender que o paciente raro não é apenas um caso clínico, mas uma pessoa com história, com família e com necessidades específicas. O conhecimento técnico é essencial, mas o acolhimento faz toda a diferença.”

Durante o evento, foram compartilhadas experiências de famílias e pacientes, evidenciando as dificuldades enfrentadas até o diagnóstico. Muitas vezes, o caminho inclui dezenas de consultas, exames e deslocamentos entre cidades. A ideia é que a UCPel, através de um trabalho de extensão possa rastrear o número de pessoas com doença rara em Pelotas.

Políticas Públicas

Com o diagnóstico, Ingrid e Lara deram início a rotina de terapias e acompanhamento multiprofissional. “Vieram as sessões com fonoaudióloga, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta respiratória e a gente vai vivendo um dia de cada vez.” Hoje, aos dez anos, Lara é acompanhada por uma equipe de especialistas e segue em constante evolução.

Ingrid reconhece que a medicina tem avançado no estudo das doenças raras, mas considera que ainda há muito a evoluir. “Muitos profissionais conhecem apenas a teoria, mas não têm prática. Isso se torna uma grande barreira para nós. Ainda há médicos que não sabem lidar ou sequer conhecem determinadas doenças raras”, observa.

Para ela, políticas públicas voltadas a essa população são fundamentais. “Precisamos de mais centros de genética e pesquisa, para reduzir o tempo de espera pelos diagnósticos e garantir qualidade de vida às famílias. Ter o diagnóstico da Lara foi essencial para sabermos como agir e iniciar a estimulação precoce, sempre pensando no bem-estar dela.”

É por isso que Gabriela também reforça a importância da formação continuada e da integração entre instituições. “O atendimento a pacientes com doenças raras exige uma equipe diversa, formada por profissionais de várias áreas da saúde, que enxergue o paciente de forma integral, desde o diagnóstico e tratamento até o acolhimento do núcleo familiar.”

A mãe da Lara também acredita que espaços de acolhimento e troca de experiências são essenciais, como os que vêm sendo fortalecidos por iniciativas como a Casa dos Raros, reunindo famílias, profissionais da saúde e instituições de apoio. “Esses encontros mostram que não estamos sozinhos. Ver outras famílias, ouvir outras histórias, dá força pra seguir e acreditar que cada pequena conquista vale a pena.”

500 mil gaúchos

Referência internacional em doenças raras, Giugliani destaca a importância do diagnóstico precoce e do atendimento multiprofissional para pacientes com condições raras. O centro, localizado em Porto Alegre, é o primeiro da América Latina dedicado exclusivamente a esse público e já atendeu mais de mil pessoas em dois anos de funcionamento.

Segundo Giugliani, uma doença é considerada rara quando afeta menos de 65 pessoas a cada 100 mil habitantes, o que equivale a um caso em cada 1,5 mil. “Apesar de cada uma ser pouco frequente, existem entre sete e oito mil doenças raras conhecidas, o que faz com que cerca de 6% da população mundial viva com alguma delas”, explica o médico. No Rio Grande do Sul, estima-se que mais de 500 mil pessoas tenham uma condição rara.

O geneticista observa que cerca de 80% das doenças raras têm origem genética e se manifestam ainda na infância. “Por isso, o teste do pezinho ampliado é uma ferramenta essencial, pois o tratamento precoce pode evitar sequelas e melhorar a qualidade de vida do bebê”, afirma. Giugliani lembrou que há uma lei federal que prevê a ampliação do exame para mais de 50 doenças, mas ainda aguarda implementação.

Casa dos Raros

A Casa dos Raros foi criada, segundo ele, para enfrentar o que chama de “odisseia diagnóstica”, o longo e desgastante percurso de pacientes em busca de um diagnóstico correto. Enquanto a média nacional é de 5,4 anos até a definição de um quadro raro, o centro conseguiu reduzir esse tempo para cerca de 100 dias, com um modelo integrado de avaliação presencial e teleconsultas.

“O paciente é atendido por uma equipe multiprofissional, que inclui médicos, dentistas, psicólogos e assistentes sociais. Tudo ocorre de forma coordenada, e isso permite chegar mais rápido a uma conclusão e iniciar o plano de manejo”, explica o médico.

A instituição funciona de forma filantrópica e gratuita, sem custos para o paciente. Para se manter, realiza campanhas, jantares beneficentes, pesquisas clínicas e recebe doações. O atendimento pode ser solicitado por encaminhamento da Secretaria Estadual de Saúde ou diretamente pelo site cdr.org.br.

Giugliani ressalta ainda a necessidade de capacitar profissionais de saúde e investir em tecnologia. “A inteligência artificial tem muito a contribuir, porque o volume de informações genéticas é enorme. Usar essas ferramentas pode agilizar diagnósticos e orientar melhor o tratamento”, disse.

Entre os sinais de alerta que podem indicar uma doença rara, o médico cita casos repetidos na família, parentes consanguíneos (como pais primos) e sintomas persistentes ou progressivos sem explicação clara. “Essas situações devem acender uma luz amarela e levar à investigação genética”, recomenda.

Este foi o caminho de Ingrid que hoje aprendeu a ressignificar a maternidade. “A gente não idealiza uma criança com deficiência. Idealiza uma criança perfeita. Eu nunca tinha tido contato com outra criança com deficiência, nem na família. É difícil receber esse diagnóstico, mas também é um aprendizado diário de amor, paciência e força”.

Acompanhe
nossas
redes sociais