“Lembrei na hora do mestre doutor Antônio Guarienti, o cara que mais diagnosticou e tratou esporotricose na história da medicina.” A frase é de um jovem médico formado em Pelotas, que atende em um hospital de Porto Alegre, diante de um paciente com feridas nos braços. Enquanto a equipe tentava chegar a um diagnóstico, ele perguntou se o paciente tinha gato em casa. Não só tinha, como o bichano estava adoentado. O episódio é prova de que a medicina requer muito do olhar atento, da escuta paciente e da transmissão de conhecimento.
Neste 18 de outubro, Dia do Médico, o Corpo e Mente buscou exemplos de profissionais que, mesmo prestes à aposentadoria, continuam atuando no consultório e na formação de novos médicos. Entre eles, Carlos Alberto Purper Bandeira, psiquiatra e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), chega aos 75 anos completando 50 anos de docência. Já o professor do curso de Medicina da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e clínico-geral na Unidade Básica de Saúde Caic Pestano, médico Antônio Carlos Guarienti, é outro exemplo de dedicação à cura. Dos 71 anos de idade, 46 são dedicados à medicina. Para os profissionais, o olhar atento e a humanização continuam sendo a maior herança da profissão.
Dedicação que ultrapassa gerações
Em passos lentos, o médico Guarienti percorre todos os setores da UBS Caic Pestano, conferindo os atendimentos, o encaminhamento de receitas e ainda encontrando tempo para orientar os alunos da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) em uma sala pequena do posto de saúde. Com 46 anos de dedicação à medicina, aos 71, não pensa em parar de atender a comunidade do bairro Pestano. O tempo lhe garantiu acompanhar gerações de pacientes. “Estamos na terceira geração. É possível criar vínculos duradouros mesmo com as mudanças sociais.”
Ex-secretário Municipal de Saúde e ex-coordenador Regional de Saúde, ele sabe bem como funciona o sistema público e tece algumas críticas ponderadas sobre a destinação de recursos. Mesmo com o olhar político inserido, a vocação e a dedicação em cuidar dos pacientes ainda são maiores que qualquer burocracia. E ele se orgulha de ver a sala cheia de futuros médicos.
Guarienti destaca a importância da prevenção e da medicina personalizada. “No início, um infarto era tratado apenas com analgésicos. Hoje, há tecnologia disponível. Mas a prevenção ainda é precária: excesso alimentar, sedentarismo, cigarro, álcool e estresse continuam sendo grandes malefícios. Nosso dever é orientar e cuidar.”
Sobre os futuros médicos, ele deixa um conselho valioso: “É fundamental ir além do estudo, viver a própria vida, tratar bem os pacientes e preservar a essência da relação humana.”
Inspiração e desafios
No Dia do Médico, a estudante Isis Maciel Matos, 19 anos, que cursa o segundo ano de Medicina, destaca a inspiração familiar na escolha da profissão. “Meu pai é médico e eu sempre admirei muito o cuidado que ele tem com as pessoas. Sempre almejei ser uma profissional tão boa quanto ele”, conta.
Sem ainda definir a especialização que pretende seguir, ela acredita que a formação é um processo de aprendizado e vivência. Para Isis, o papel do médico vai além do diagnóstico e da prescrição: “Ele precisa entender todos os aspectos da vida do paciente para chegar a um bom resultado.”
Com oito anos de atuação, o médico Tallys Bohns Blaas, 48 anos, reconhece os desafios de trabalhar na atenção básica e no pronto-socorro. “É um desafio. A medicina é complexa. Defendemos a prevenção, mas sabemos da dificuldade que é mudar o estilo de vida do paciente”, afirmou. Segundo ele, o trabalho diário nas unidades de saúde é voltado a acompanhar essas mudanças e lidar com as comorbidades e complicações que exigem, muitas vezes, intervenções urgentes ou especializadas.
O cuidado com quem cuida
Há 85 anos, a Associação Médica de Pelotas (AMP) se preocupa com os profissionais da cidade, representando a categoria e capacitando o quadro de associados. Fundada em 7 de novembro de 1940 por um grupo de sonhadores, a AMP protagonizou um marco histórico: a implementação dos cursos de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Entre tantas conquistas, mantém a promoção do conhecimento médico-científico.
Segundo o presidente da AMP, o ginecologista Sílvio Reis, a associação sempre promoveu atualização científica e integração social entre médicos e estudantes. “Criamos ligas acadêmicas para levar aos jovens o melhor em termos de ciência médica”, afirma Reis. A AMP também foi fundamental na criação das faculdades de Medicina da cidade, a Católica e a Leiga (atual Universidade Federal), no final da década de 1950, contribuindo para a formação de gerações de médicos. A celebração será com jantar no Dunas Clube.
Para quem não sabe, o dia 18 de outubro homenageia São Lucas, discípulo de São Paulo e médico, padroeiro da profissão.
Cuidar do físico e da alma
Formado em 1975, quando a faculdade ainda era particular, “a Leiga”, como era chamada, Purper Bandeira iniciou cedo na docência. “Me formei em dezembro e, em fevereiro, já fui contratado como professor. A residência em Psiquiatria foi a primeira da faculdade, criada pelo professor Darcy Abuchaim. Desde então, sigo lecionando”, lembra.
Durante a residência, o atendimento era integral: “Não podíamos ter consultório. Atendíamos no Sanatório Espírita, que abrigava o departamento todo. Dávamos aula e atendíamos pacientes internados.” A Psicologia Médica, explica, é uma marca do curso em Pelotas. “Os alunos aprendem a enxergar o paciente como pessoa, não como diagnóstico. O João não é o fígado, nem a pneumonia. Essa perspectiva evita que se tornem médicos mecanicistas e melhora a comunicação com o paciente.”
Para Purper Bandeira, a vocação vai além da técnica: “O que me gratifica é entender o paciente. Tem que gostar de gente. Se não, a medicina vira uma linha de produção.” Mesmo com meio século de prática, ele mantém o entusiasmo: “Se não houvesse a obrigação de se aposentar aos 75, eu continuaria. Lecionar me mantém vivo.”
Ele também alerta para os desafios da era digital: “A internet não seleciona informações. Pacientes chegam pedindo remédios porque leram algo online. Cabe ao médico orientar, examinar e indicar o tratamento adequado. Nenhuma máquina substitui o olhar humano.”
Bandeira destaca que a medicina nem sempre cura, mas cuida. “Infecções podem ser curadas, algumas cirurgias também. Mas doenças crônicas, como diabetes ou dependência química, exigem acompanhamento contínuo. O papel do médico é garantir que o paciente siga o tratamento e tenha qualidade de vida.”