Em uma noite de quarta-feira, enquanto os jovens da invernada mirim ensaiam no tablado o Maçanico, os pais preparam o carreteiro que será servido no jantar e as mães se dedicam às decorações para os caminhões alegóricos do desfile do dia 20 de setembro, dali a três dias. No galpão da União Gaúcha João Simões Lopes Neto, esse cotidiano mantém viva, há mais de cem anos, a dedicação à cultura gaúcha na entidade tradicionalista mais antiga do Estado.
Com o lema “Pelo Rio Grande e as tradições, tudo!”, a União Gaúcha completou nesta sexta-feira 126 anos de história. Em 19 de setembro de 1899, reuniram-se em Pelotas 62 pessoas, entre elas Vasco Pinto Bandeira, César Dias e Vital Costa, para a fundação da primeira associação voltada ao culto das tradições gaúchas. Desde então, milhares de homens e mulheres foram responsáveis por manter vivas as atividades em prol do objetivo da entidade de “relembrar, honrar e conservar as tradições e o patrimônio moral, histórico e cultural sul-rio-grandense”.
Atualmente, o galpão e a área campeira da União Gaúcha, localizada na avenida Ildefonso Simões Lopes, contam com um quadro social de cerca de 200 sócios contribuintes, 350 sócios remidos e 120 sócios laureados. A entidade é composta pelo departamento artístico, com as invernadas mirim, juvenil, adulta e veterana, totalizando aproximadamente 100 integrantes diretos. Além disso, as 70 cocheiras abrigam cerca de 100 cavalos dos associados.

Entidade tem uma Escola Tradicionalista gratuita para crianças e jovens de escolas públicas. (Foto: Jô Folha)
A diretora cultural, Lilia Del Aguila, lembra que a União Gaúcha não é um CTG, pois o pioneirismo da entidade na organização de uma associação voltada à preservação da cultura gaúcha antecede o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). “Antes mesmo de começarem a pensar no movimento tradicionalista, a União Gaúcha já tinha isso acontecendo: os gaúchos já se mobilizavam, se reuniam e pensavam em manter essa cultura e história vivas aqui”, diz.
Lilia recorda que, em 1950, com a reabertura da União Gaúcha após o hiato imposto pela Segunda Guerra Mundial, o nome do renomado pelotense João Simões Lopes — autor de Contos Gauchescos e Lendas do Sul — foi incorporado à entidade, em reconhecimento à sua atuação como um dos fundadores e mais ativos defensores do tradicionalismo. “Isso mostra que, apesar de hoje a gente ter essa cultura viva e cultuada, de certa forma a entidade deu a ideia disso bem antes de ser realizado”, afirma.
Tradição que passa por gerações
Os relatos de quem faz parte da União Gaúcha são os mesmos: a união vai além do nome e a constituição da entidade é a de uma grande família. Boa parte de quem frequenta o local começou por influência de gerações anteriores. São filhos, netos e sobrinhos de associados que também cresceram nas dependências da entidade. Uma dessas pessoas que construiu uma família no galpão da Ildefonso Simões Lopes foi a homenageada deste ano no aniversário de 126 anos. Marlene Albuquerque Maciel frequenta a União Gaúcha semanalmente desde 1978.
Na entidade, ela conheceu o marido e criou dois filhos. “Aqui é a minha casa. Foram várias patronagens, obras, fiz várias amizades aqui dentro, passei a minha vida inteira aqui, desde os meus 22 anos”, conta. Marlene recorda com orgulho quando a filha desfilou na Sapucaí, em 1996, quando a escola Unidos de Vila Isabel teve como tema a Epopeia Farroupilha. “Criei todos os meus filhos aqui dentro e os meus netos também. É uma vida inteira vivendo intensamente a União Gaúcha.”
André Ossanes, coordenador da invernada mirim, cresceu dançando na União Gaúcha, da qual só se afastou devido a uma mudança a trabalho. Ao voltar a Pelotas, retornou à entidade atendendo ao pedido da filha, que desejava integrar a invernada mirim, assim como o pai na infância. “Foi um momento muito legal para mim, o retorno, por dois motivos: primeiro, porque eu estava retornando para a União Gaúcha e, segundo, porque eu voltava a pedido da minha filha. Então já vamos para a terceira geração.”
Conforme Ossanes, a responsabilidade de estar à frente da invernada mirim é grande, porque ali estão os gaúchos e prendas que darão continuidade ao legado da União Gaúcha. “E a invernada mirim é a base, é onde tudo começa. Então, aqui saem os dançarinos que, se tudo der certo, se Deus quiser, vão estar dançando no Juvenart daqui a uns anos e, mais adiante, no Enart”, diz sobre as principais competições de arte tradicionalista do Estado. “Nós temos que fazer com que essas crianças entendam a importância da centenária na vida delas”, completa.
O futuro da tradição e da centenária
O ensaio repetido dos passos do Maçanico e da coreografia de várias músicas, algumas inclusive autorais da União Gaúcha, faz parte da rotina dos pequenos da invernada mirim, assim como da juvenil e da adulta. Uma das prendinhas, Maria Luisa Pereira dos Passos, declara após o término da dança: “O que eu mais gosto daqui é dançar e fazer amizades. Eu amo dançar aqui.”
O par dela no ensaio, Thalles Bilhalva, está há dois anos na entidade e conta que, além de dançar, o que mais gosta é de aprender na União Gaúcha sobre a história do Estado. “A gente aprende muito aqui sobre o nosso Rio Grande. Faz eu adorar estudar”, diz.
Escola Tradicionalista
Apesar de as portas da União Gaúcha estarem sempre abertas para os visitantes que desejam assistir aos ensaios e apreciar um bom churrasco, carreteiro e outras comidas típicas, a diretora cultural diz que boa parte das pessoas ainda tem receio de ir sem ser convidada diretamente por alguém da entidade. Diante disso, e com o propósito de ampliar o acesso de crianças e jovens ao ambiente de um centro tradicionalista e à cultura gaúcha, a entidade lançou a Escola Tradicionalista.
O projeto atende estudantes de 8 a 18 anos, matriculados no Ensino Fundamental ou Médio da rede pública municipal e estadual de Pelotas. A iniciativa oferece oficinas de cultura gaúcha, dança, música, culinária típica e trabalhos artesanais em madeira e couro, entre outras atividades. Tanto a inscrição quanto a participação na Escola Tradicionalista são totalmente gratuitas.
Desfile
Para quem for acompanhar o desfile de 20 de setembro, o piquete da União Gaúcha João Simões Lopes Neto será o primeiro a passar pela avenida Bento Gonçalves, por se tratar da entidade com a data de fundação mais antiga entre os grupos tradicionalistas de Pelotas.