A adolescência é um período de intensas transformações físicas, emocionais e sociais. Não se trata apenas de uma “fase” passageira, mas de um momento de desenvolvimento fundamental, em que escolhas e vivências terão reflexos ao longo de toda a vida adulta. Apesar disso, ainda existe uma lacuna no atendimento médico voltado a essa faixa etária, muitas vezes deixada em um “limbo” entre a pediatria, que geralmente se concentra em crianças até os 12 anos, e a clínica médica, direcionada a partir dos 18. É justamente nesse espaço que atua a hebiatria, especialidade dedicada ao cuidado integral do adolescente.
A professora da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e médica de adolescentes, doutora Milene Maria Saalfeld, explica que a hebiatria é uma subespecialidade da pediatria cujo nome deriva da deusa grega Hebe, símbolo da juventude. No entanto, ela prefere a denominação “medicina do adolescente”, mais clara e acessível. A especialista foi uma das participantes do 17º Congresso Brasileiro de Adolescência, realizado este mês em Porto Alegre, que teve como objetivo capacitar profissionais de saúde para atender de forma qualificada esse público.
Segundo Milene, a adolescência envolve desafios que vão muito além das doenças clássicas. “O adolescente também tem meningite, também tem asma, mas, além disso, enfrenta questões emocionais como depressão, ansiedade e até ideação suicida. É essencial que todos os profissionais tenham uma visão geral sobre a saúde do adolescente, compreendendo suas particularidades”, destaca.
O adolescente não é “criança grande” nem “adulto pequeno”
Um dos maiores equívocos, segundo a médica, é tratar o adolescente como se fosse apenas uma transição entre a infância e a vida adulta. A residente de pediatria Maria Clara Ligório, que atua no ambulatório de medicina do adolescente da UCPel, reforça que esse é um período de construção da identidade, em que o jovem precisa lidar com mudanças corporais, escolhas de carreira, independência dos pais e definição da própria sexualidade.
Nesse contexto, o ambiente de atendimento também importa. Consultórios excessivamente infantilizados, repletos de brinquedos e bichinhos de pelúcia, podem afastar o adolescente. É necessário criar um espaço neutro e respeitoso, em que o jovem se sinta reconhecido. “O adolescente não é uma criança grande nem um adulto pequeno. Ele tem suas próprias demandas e precisa de um olhar específico”, resume Milene.
O vínculo que faz a diferença
Mais do que diagnósticos e prescrições, o que garante a eficácia do acompanhamento é o vínculo estabelecido entre médico e paciente. “Todo mundo deveria ter tido um pediatra para chamar de seu”, diz Maria Clara. Esse laço de confiança permite que o adolescente compartilhe dúvidas sobre sexualidade, prevenção de gravidez, uso de drogas ou questões de identidade, muitas vezes pela primeira vez.
Na prática, a consulta é dividida em duas etapas: primeiro, o adolescente é atendido junto da família, principalmente durante o exame. Depois, o jovem conversa sozinho com o médico, sempre com garantia de confidencialidade. É nesse momento que surgem relatos importantes, como pedidos por anticoncepcional, confissões sobre uso de substâncias ou dúvidas relacionadas à orientação sexual. “É muito importante manter esse sigilo e a confiança, desde que não coloque em risco a vida de terceiros”, destaca Milene.
A experiência de Pelotas
Em 2010, a Universidade Católica de Pelotas criou o ambulatório de medicina do adolescente, hoje também presente em outras universidades.
O espaço funciona diariamente, atendendo de forma gratuita jovens de até 19 anos. Muitos chegam encaminhados pela rede básica de saúde, quando há necessidade de acompanhamento especializado.
“Sou apaixonada pelo nosso ambulatório. Criamos vínculos tão fortes que, quando chega o momento da alta, é um sofrimento para eles e para nós. Muitas vezes fazemos até pequenos rituais de despedida”, conta Milene, emocionada. O trabalho realizado em Pelotas ganhou reconhecimento nacional e foi apresentado no congresso de Porto Alegre, reforçando a importância da iniciativa.
Formação de novos especialistas
Para Maria Clara, que veio de Santa Maria para a residência em pediatria na Católica, a experiência tem sido transformadora. “A pediatria nos escolhe, e poder atuar diretamente no cuidado ao adolescente amplia nossa visão sobre a importância desse atendimento. A formação aqui nos privilegia por oferecer essa vivência prática”, afirma.
O objetivo da equipe é multiplicar esse conhecimento. “Quando convidei a Maria Clara para vir comigo, fiquei feliz por ela aceitar. Quero que cada residente leve adiante essa preocupação com o adolescente, seja em Santa Maria, Rondônia, São Paulo ou Rio. É assim que ampliamos a visibilidade da especialidade”, projeta Milene.
Saúde mental em foco
Nos últimos anos, o aumento dos casos de ansiedade, depressão e outras questões emocionais entre adolescentes chama atenção dos especialistas. Um dos fatores apontados é o excesso de exposição às telas e às redes sociais, com comparações constantes e acesso irrestrito a conteúdos que muitas vezes os pais não conseguem monitorar.
“Já sabemos que mais de cinco horas diárias no celular têm efeitos colaterais semelhantes ao uso de drogas, pois prejudicam o sistema de recompensa do cérebro em desenvolvimento”, alerta Maria Clara. A adolescência é um dos períodos em que o cérebro passa por intensa especialização, e estímulos positivos, como a prática esportiva, fortalecem esse processo. Por outro lado, a superexposição digital pode contribuir para quadros de ansiedade, dificuldade de foco e até dependência química.
Milene complementa que transtornos antes associados à vida adulta, como depressão e ansiedade, estão sendo diagnosticados cada vez mais cedo. Para enfrentar isso, é essencial garantir espaço de escuta e sigilo nas consultas. “Muitas vezes, o pediatra é o primeiro profissional com quem o adolescente se sente à vontade para falar sobre seus sentimentos. Por isso, o sigilo é fundamental, desde que não coloque em risco a vida dele ou de terceiros”, explica.
Adolescentes destacam importância de médico
O ponto central levantado em conversas com adolescentes do Colégio Gonzaga foi a percepção por parte de suas famílias da necessidade de um especialista para atendê-los. Ao revelarem nunca ter ouvido falar na hebiatria, apontaram que a atuação desse profissional seria relevante.
Antonella Corvello de Oliveira, 15 anos, contou que deixou de ir ao pediatra entre os 13 e 14 anos e, desde então, recorre a clínicos gerais apenas quando adoece. “Não tem um médico específico que eu procure sempre. Quando fico mal, vou aonde tem ajuda”, relatou. Para ela, a figura do hebiatra poderia dar mais segurança aos jovens. “Seria legal e importante. Mostra que somos importantes, porque nessa fase a gente fica meio perdido.”
Ela destacou ainda que, no inverno, sua saúde exige atenção especial. “Minha imunidade é bem baixa, então fico doente seguido. Muitas vezes minha mãe precisa correr para achar um lugar para me levar. Normalmente me medicam e pronto.” Sobre cuidados preventivos, Antonella disse tentar equilibrar a alimentação e recorre aos pais quando tem dúvidas sobre saúde.
Já Liz Schuch Hashimoto, 14, parou de ir ao pediatra no último ano e atualmente procura médicos de acordo com a necessidade, como oftalmologista ou outras especialidades. A colega Isabela Schmidt Dolinski, 15, nunca tinha ouvido falar em hebiatria e achou bem interessante. Atualmente ela é atendida principalmente pelo convênio de saúde da família. “Sempre tem um médico disponível quando precisamos”, contou. Sobre a especialização, também considerou relevante: “Tem questões que podem deixar a gente desconfortável de falar com qualquer médico. Seria bom ter alguém especializado no adolescente.”
Ramiro de Farias Betemps da Silva, 15, costuma fazer exame de sangue duas vezes por ano. O embate com a balança o colocou desde cedo nos consultórios, mas aos dez anos já achava um pouco crescido para ir ao pediatra. Desde então, algumas dúvidas são esclarecidas com o irmão mais velho, que é sua referência paterna em casa.
“As questões hormonais foram aparecendo e eu fui lidando da melhor maneira possível. Se soubesse que tem essa especialidade, me sentiria mais tranquilo para tratar questões do que com um clínico geral, onde acabamos vendo outras coisas que aparecem mais para adultos”, avalia. Atualmente o jovem mantém uma alimentação balanceada, pratica esportes e faz academia. “Jogo vôlei há cinco anos”, conta com orgulho.
Comportamentos de risco e prevenção
Outro aspecto recorrente no consultório é o comportamento de risco. A onipotência típica da adolescência leva muitos jovens a acreditarem que nada de grave lhes acontecerá. Isso pode se refletir em práticas como consumo excessivo de álcool, tabaco, experimentação de drogas e relações sexuais desprotegidas. “Uma das partes mais importantes da nossa consulta é a prevenção”, destaca Milene.
Ela ressalta que o papel do médico não é dar sermões, mas fornecer informações claras sobre os efeitos e riscos. “Não digo simplesmente ‘não beba’ ou ‘não fume’. Eu explico o que o álcool causa no organismo, o que o cigarro eletrônico provoca no pulmão, para que o adolescente possa refletir e tirar suas próprias conclusões”, afirma.
O desafio de dar visibilidade
Ainda pouco conhecida, a hebiatria enfrenta o desafio de conquistar espaço dentro da medicina. Mas os avanços já são visíveis: novas gerações de pediatras estão ampliando o atendimento até os 19 ou 20 anos, permitindo continuidade no acompanhamento e fortalecendo o vínculo médico-paciente.
No fim, cuidar da saúde do adolescente é mais do que tratar doenças. É garantir que essa etapa seja vivida com apoio, informação e respeito, preparando jovens para se tornarem adultos mais saudáveis, conscientes e felizes. “O adolescente de hoje será o adulto de amanhã. E a forma como ele é cuidado agora definirá quem ele vai se tornar”, resume Milene, ao lado da acadêmica Maria Clara.