“Parecia irreal, sabe?”. A lembrança é de Laura Rabassa, 74 anos. Há exatas quatro décadas, em um 18 de julho, a torcedora rubro-negra testemunhava a vitória considerada por muitos como a maior da história do Grêmio Esportivo Brasil. Diante de uma quantidade incontável de xavantes no Bento Freitas, o time do técnico Valmir Louruz aplicou 2 a 0 no Flamengo de Zico e se aproximou das semifinais da Taça de Ouro, o Brasileirão de 1985.
A partida valia pela quinta e penúltima rodada de um dos quatro grupos de quatro integrantes cada da segunda fase. Em uma época na qual as vitórias representavam dois pontos, e não três, o clube carioca liderava a chave F com seis pontos. O Brasil somava cinco; Ceará, quatro; e Bahia, três. Tratava-se, portanto, de um confronto direto para chegar com vantagem à rodada derradeira.
O cenário era esse porque o Rubro-Negro, superando a incerteza gerada pela Copa Bento Gonçalves durante a pausa do Brasileirão, iniciou com tudo o quadrangular no qual era o azarão. De virada, os zagueiros Hélio Vieira e Silva garantiram o triunfo sobre o Bahia por 2 a 1, na Baixada. Em seguida, empate sem gols fora de casa com o Ceará. Depois, derrota por 1 a 0 para o Flamengo, no Maracanã.
O revés no Rio, aliás, ocorreu graças a um gol de pênalti convertido por Bebeto. O jornal Diário da Manhã estampou em sua capa da edição do dia seguinte ao jogo, 11 de julho de 1985, a manchete: “resultado criminoso”. Nas páginas, a atuação do árbitro Emídio Marques de Mesquita foi criticada. Aquele Flamengo contava com Zagallo no comando técnico e tinha, além de Bebeto, lendas como Fillol, Leandro, Adílio e Tita.

“Nesse tipo de jogo, qualquer cara que tem uma carteira mais ou menos dá um carteiraço no porteiro e entra. Desde o Juizado de Menores até promotor, bombeiro, todo mundo entrava”, relembra o ex-presidente Rogério Moreira (Foto: Fernando Rascado)
21 mil ingressos vendidos; público real? Impossível saber
A visita do Brasil ao principal templo do futebol nacional marcou o último jogo do Fla antes do retorno de Zico. O craque, camisa 10 da Seleção, retornava da Udinese, da Itália, onde ficou por dois anos após sair do próprio clube carioca. O Xavante, ao retornar do Rio, não tomou conhecimento do Ceará: 4 a 0 no Bento Freitas. “Não teve graça”, destacou o Diário da Manhã. Bira marcou três gols na partida; Canhotinho fechou o placar.
O triunfo sobre o Vozão foi no domingo, 14 de julho. Dia 18, às 21h30min, o poderoso Flamengo estaria na casa xavante – pela segunda vez em dois anos, como relembra o radialista Caldenei Gomes, que trabalhou no jogo como “puxador de fios” da Rádio Nacional. “Eles tinham perdido no ano anterior e sabiam que aqui era muito difícil jogar, mas não a ponto de perder por 2 a 0 da forma que perderam”, conta.
Laura Rabassa ainda carrega na memória vários detalhes daquela noite de inverno. Trabalhava na loja Mesbla. Com antecedência, comprou ingressos para ela e o marido. “Combinei de sair do serviço e encontrar o meu esposo para a gente descer para a Baixada. A Princesa Isabel era um mar vermelho. As filas eram gigantescas. Naquele tempo não tinha aquela coisa de número de pagantes. Era simplesmente lotado”, recorda.
O presidente do Brasil na época, Rogério Moreira, é taxativo: não dava para se ter ideia de quantas pessoas estavam dentro do estádio. Foram vendidos 21 mil ingressos, esgotados na antevéspera. “Nesse tipo de jogo, qualquer cara que tem uma carteira mais ou menos dá um carteiraço no porteiro e entra. Desde o Juizado de Menores até promotor, bombeiro, todo mundo entrava”, diz.

Capa do Diário da Manhã do dia seguinte ao triunfo do Brasil em cima do Flamengo (Foto: Gustavo Pereira)
As armas do Brasil
Desde a definição da composição do grupo, boatos circulavam indicando o interesse da direção do Flamengo em transferir o confronto para Porto Alegre em função das condições do estádio Bento Freitas. Rogério Moreira e Caldenei Gomes convergem ao afirmar que isso não procedia. Entretanto, diversas fontes relatavam que o clube carioca teria contratado um seguro para Zico naquela partida em Pelotas.
A delegação carioca se hospedou no Tourist Hotel. A do Brasil, na Cascata. O duelo que atraía as atenções do país naquele dia – na véspera, o Ceará bateu o Bahia por 2 a 1 – aproximava duas instituições de realidades distantes. Matéria da revista Placar informava que a folha salarial do Xavante seria de 70 milhões de cruzeiros e que Zico, sozinho, receberia 75 milhões de cruzeiros por mês.
Contra um esquadrão repleto de craques, campeão continental e mundial em 1981 e brasileiro em 1980, 82 e 83, o Rubro-Negro usava suas armas – que não eram poucas. “Nossa equipe tinha Lívio, André, Doraci… Eram jogadores tarimbados e que traziam experiência. Eu era o mais jovem da equipe. Tinha o Júnior Brasília, Márcio, Alamir… Levavam aquela qualidade técnica. A gente treinava muito”, conta Bira.
Aos 20 anos, o ex-atacante, hoje vice-presidente de futebol interino do Rubro-Negro, revela que não possuía a noção, na ocasião, do que tudo aquilo viria a significar. Bira anotou 16 vezes no Brasileirão de 85. Tão logo encerrada a competição, ele assinou junto ao Grêmio seu primeiro contrato profissional. Foi direto para uma excursão na Europa e marcou gol no Barcelona, decidindo o Troféu Palma de Mallorca em 10 de agosto.
Poucas semanas antes disso, entretanto, ele foi decisivo para o Xavante bater o Flamengo. “Na época não se mudava muito a maneira de jogar. 4-3-3, homens abertos nas pontas, um homem enfiado na área, três meias… Todo mundo jogava da mesma forma. […] Não se projetava como se projeta hoje. Hoje tu faz um mapa da competição. Analisa o adversário da próxima semana…”, compara.

“A Princesa Isabel era um mar vermelho. As filas eram gigantescas. […] Era simplesmente lotado”, conta Laura Rabassa, torcedora presente na Baixada (Foto: Fernando Rascado)
A noite em que tudo deu certo
Para Rogério Moreira, “aquela noite era do Brasil”. Uma explicação justificada pelos fatos dos 90 minutos. No primeiro tempo, Bira tirou proveito de uma indecisão entre Fillol e Mozer para abrir o placar. Durante a etapa final, Júnior Brasília puxou contra-ataque e cruzou – ou chutou? A bola encobriu o goleiro campeão do mundo pela Argentina em 1978 e entrou. Não havia outro desfecho que não fosse a vitória do Xavante, que assumiu a liderança.
“O momento era tão bom que as circunstâncias todas favoreceram o Brasil. Os dois gols foram em lances inusitados. Primeiro uma indecisão entre dois jogadores consagrados – Fillol e Mozer -, o Bira se aproveitou. E o segundo gol aquela eterna discussão se o Júnior Brasília quis cruzar ou chutar. Uma finalização improvável, quase sem ângulo”, rememora Caldenei.
A partida registrou fatos como os dez minutos de acréscimo dados pelo árbitro Romualdo Arppi Filho no primeiro tempo. O juiz expulsou Giovani Mattea e Rogério Moreira por reclamação – eles invadiram o gramado. Fora de campo, o capitão Goz, da Brigada Militar, relatou a venda de cerca de três mil ingressos falsos por cambistas. Os portões do estádio foram fechados às 20h20min. A renda? 116 milhões de cruzeiros – dos quais 60% ficaram com o vencedor do jogo, o Brasil.
Quarenta anos depois, Laura Rabassa ainda se emociona. “Já vivi muitas coisas na Baixada. Mas isso a gente enche o peito quando fala. Aquilo não parecia verdade, custou a cair a ficha”. A história estava escrita, mas ela poderia ser ampliada. O Xavante precisava vencer o já eliminado Bahia, na Fonte Nova, em Salvador, para assegurar o que parecia impensável: um lugar entre os quatro melhores times do país.
Triunfo em Salvador
Menos de 72 horas após superar o Flamengo e assumir a ponta da chave, o Rubro-Negro precisaria estar em campo na capital baiana. A equipe da Baixada somava sete pontos; o Flamengo, seis; o Ceará, cinco; e o Bahia, sem chances, três. Era vencer o Tricolor de Aço e ir à semifinal da Taça de Ouro, o que representaria ficar a 180 minutos não apenas da decisão do título nacional, mas também da presença na Libertadores da América de 86.
De cabeça, Bira abriu o placar na Fonte Nova. O Bahia empatou já na etapa final, mas Bira, sempre ele, recolocou o Brasil em vantagem. Depois, o camisa 9 deu assistência para o gol de Júnior Brasília. Os donos da casa ainda marcaram outra vez: 3 a 2 para o Xavante. Até mesmo um empate serviria para a classificação, pois o Flamengo tropeçou no Maracanã contra o Ceará: 2 a 2. O Xavante era semifinalista.
O adversário viria do grupo H. O Bangu ocupava a ponta, porém tinha pela frente o Internacional, no Beira-Rio. Uma vitória colorada diante de mais 62 mil torcedores daria a vaga ao time gaúcho. Só que o ano era de zebras, e a equipe do subúrbio do Rio de Janeiro superou o Inter por 2 a 1. Nas semifinais, portanto, seria Brasil x Bangu de um lado; Atlético Mineiro x Coritiba do outro. Mas o regulamento jogaria contra os pelotenses.

Vitórias valiam dois pontos na época (Foto: Reprodução – AHS)
90 minutos para a história
18 de julho de 1985
Brasil 2 x 0 Flamengo
(Brasileirão)
Brasil: João Luís; Nei Dias, Silva, Hélio Vieira e Jorge Batata; Doraci, Canhotinho (Márcio) e Lívio; Alamir, Júnior Brasília e Bira. Técnico: Valmir Louruz.
Flamengo: Fillol; Ailton, Leandro, Mozer e Adalberto; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Chiquinho e Bebeto. Técnico: Zagallo.
Gols: Bira e Júnior Brasília.
No próximo episódio…
Determinação prévia da CBF impede o Brasil de ser mandante em uma semifinal no Bento Freitas. Xavante cai para o Bangu com duas derrotas e fica sem vaga na Libertadores.
No episódio anterior
De Felipão a Louruz: força do Brasil já aparecia dois anos antes do ápice.