Há três anos, o músico João Marcos Nolte Martins, mais conhecido por Negrinho Martins, e a mulher dele, a produtora cultural Adriana Noronha, tinham um sonho: criar um projeto no qual a música era a ferramenta de transformação social. Do universo das aspirações ao fato concreto, o Orquestrando Sonhos, iniciativa sociocultural de educação musical continuada, foi logo posto em prática, com a ajuda de amigos e instituições parceiras. E o que começou pequeno cresceu rápido e hoje atua em diferentes frentes, atendendo 740 pessoas, entre crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência (PCDs) em situação de vulnerabilidade.
Com esse público-alvo tão plural, os objetivos também se diversificaram e, além dos instrumentos musicais, a iniciativa foi ao encontro do estímulo à reflexão e a conscientização, por meio de oficinas e debates, sobre outros temas, a exemplo do meio ambiente, equidade de gênero, identidade cultural e ancestralidade. Este projeto, que atualmente a é o destaque desta semana do #PelotasMerece.
Com tanta dedicação, o projeto ganhou o reconhecimento de quem está de olho em iniciativas que venham a somar na busca por um Rio Grande do Sul melhor, com mais oportunidades e desenvolvimento. Em abril, por exemplo, o Orquestrando Sonhos foi convidado pela Secretaria de Inovação Ciência e Tecnologia para participar do South Summit Brazil.
Diferentes pessoas e lugares
O projeto começou em 2022 no Círculo Operário Pelotense (COP), com grupo de crianças, oriundas de famílias em vulnerabilidade social, e de idosos. As ações por lá, finalizadas no mês passado, depois de quase dois anos, foram financiadas por uma emenda parlamentar do deputado estadual, Luiz Marenco (PDT).
Atualmente as atividades ocorrem todos os dias da semana em locais diferentes, também em outros lugares. Acolhem o Orquestrando as escolas Paulo Freire e Francisco Simões, a Associação de Praças Policiais e Bombeiros Militares do Estado do Rio Grande do Sul (Aspra-RS), que recebe gratuitamente o grupo da maturidade, e a praça CEU do Dunas. Ainda desenvolve atividades na Colônia Z3, a escola Raphael Brusque, a Central Única das Favelas (Cufa Z3) e a Ong Educação Infantil Gesto. A Escola Bibiano de Almeida será a próxima entidade a receber ações da iniciativa.
Com uma trajetória na música de quase 40 anos, o baixista, violonista, arranjador, produtor musical e compositor Negrinho Martins é um dos mais requisitados músicos da sua geração. O reconhecimento o levou e ainda leva muitas vezes para fora de Pelotas, sua terra natal, para onde ele sempre volta.
Foi entre idas e vindas que o músico começou a pensar o quanto ele conseguia contribuir com a própria cidade. “Eu viajava muito e passava em estúdios de gravações. Por estar bastante na estrada a gente acaba por não fazer muito pela nossa cidade, a partir de uma certa idade eu senti a necessidade de fazer um trabalho de educação social voltado para Pelotas”, relembra o músico.

Negrinho Martins queria fazer algo por Pelotas. (Foto: Divulgação)
No início, Martins e Adriana contaram apenas com a ajuda dos músicos da Camerata Negrinho Martins. Era desse grupo de cordas que saíram os professores do Orquestrando. Eles continuam na proposta, mas hoje há o envolvimento de outros educadores convidados.
São professores no projeto: Igor Amaral (violino), Aline Hartwig (viola) e Clara Lamonaca (violoncelo), além do próprio Martins. O grupo de capoeira Filhos da Roda, do mestre Samuel é outro parceiro. “Nosso foco é nas cordas, mas tem percussão, teclado, violão e flauta. Na iniciação a gente faz com a flauta”, conta Martins.
Havia também aulas de teatro, mas foram descontinuadas. “No momento estamos em busca de parcerias, já tivemos parceria com professores e alunos do Centro de Artes UFPel”, comenta o músico.
Música cura a alma
Nas quintas-feiras, por exemplo, é o dia do Orquestrando Sonhos na Maturidade, uma iniciativa dedicada à terceira idade, que promove encontros semanais de duas horas repletos de música, alegria e amizade. Nesses encontros, os participantes se reúnem em uma grande roda, onde a diversão é a protagonista. Através da música, trabalha-se as memórias afetivas, em busca de um espaço acolhedor e estimulante para que todos possam compartilhar suas histórias e experiências. “A nossa ordem aqui é se divertir e o repertório vai sendo montado de acordo com o que que eles gostam”, explica Negrinho Martins.
A auxiliar de enfermagem aposentada, Eloá Corrêa Soares, 92 anos, acompanha o grupo desde o início, quando era no COP. “Eu gosto muito de música. Eu lidei a vida inteira com a dor e sempre a música esteve na minha vida. A música cura a alma e o até o corpo”, fala.
No grupo, Eloá aprendeu a tocar cubana, mas já fez aulas de violino e sopapo e ajuda na curadoria das canções. Animada, ela quer que o Orquestrando se transforme em uma organização não-governamental (ong) para ampliar a sua atuação. “Eu dou ideias, como já lidei com muita gente, fui líder de sindicato, eu dei as dicas pra ela (Adriana) organizar o grupo”, fala a aposentada.
“Eu sou uma aprendiz aqui, mas a música é tudo pra mim, por isso onde eles estiverem eu vou junto”, diz a aposentada Shirlei César Prestes, 80, que não perde um encontro do grupo. Com eles ela viaja e da turma recebe apoio e muito carinho, comenta. “O Negrinho e a Adriana são minha segunda família”, fala Shirlei.
Em busca de recursos
Para prosseguir com a iniciativa, o casal está encaminhando projetos às leis de incentivo. O projeto também recebeu recurso de emenda impositiva do vereador Paulo Coitinho (Cidadania). O Sesc e a Secretaria de Cultura do Município também são parceiras nas atividades. Mas a luta por ajuda financeira é constante para manter o Orquestrando de pé. “Quem puder ajudar, estamos abertos à parcerias e apoios. Hoje temos nove pessoas trabalhando conosco, todos pagos. Os nossos professores são oriundos de projetos sociais e ainda estão estudando. Eles foram nossos alunos antes e agora são professores, esse é o caminho”, argumenta a produtora cultural.
Até os amigos entram com recursos para as ações. Às vésperas da Páscoa, com uma “vaquinha”, foi possível realizar um curso de preparação de ovos de chocolate para as mães das crianças da Z3.
Além de fazerem os ovos ao lado dos filhos, essas mulheres puderam levar alguns deles para casa. “As mães também levaram para casa um kit para fazer pra casa ou para vender. Várias delas fizeram”, conta Adriana.
A própria Camerata Negrinho Martins é uma das fontes de renda do projeto. Parte dos valores conseguidos com as apresentações reverte para as ações do Orquestrando. “A Camerata toca bastante, graças a Deus. Daí a gente tira um pouco de dinheiro. Eu e o Negrinho não temos filhos, então o nosso projeto é o nosso grande filho”, diz Adriana
Reconhecimento
Em 9 de abril deste ano, a convite da Secretaria de Tecnologia e Inovação, o Orquestrando participou da abertura oficial do South Summit Brasil, no RS Innovation Stage, espaço dedicado ao governo no evento. O projeto pelotense integra o Programa Comunidades Inovadoras, coordenado pela Secretaria de Inovação Ciência e Tecnologia do Estado.
No evento, o Orquestrando Sonhos apresentou uma suíte musical arranjada por Martins, com obras de Beethoven, Mozart e Piazzolla, além de composições brasileiras e um medley de funks. O repertório buscou refletir sobre a diversidade e a identidade cultural do projeto.
Essa ida ao South Summit foi “incrível”, descrevem os criadores do projeto e proporcionou a entrada de um novo parceiro: a Central Única das Favelas (Cufa). “Estamos costurando uma amizade, vamos ver se conseguimos fazer alguma coisa através deles. A gente está estudando”, fala a produtora.
O grupo foi recebido pela Brigada Ambiental, que levou os jovens músicos para a ilha do Pavão, onde ficaram hospedados. “A Secretaria de Inovação e Tecnologia nos recebeu, foi uma experiência fantástica para eles. Alguns nunca tinham viajado”, relembra Adriana.
Escola de luthiers
Uma das preocupações dos organizadores é com a adesão, especialmente das mães. Adriana percebeu que é necessário um estímulo para que os familiares apoiem mais seus filhos e proporcionem que eles possam se manter dentro das atividades do projeto. “Algumas mães solo não participam ou estão trabalhando ou estão dispersas. A gente sabe da grande vulnerabilidade social que se encontra por lá e isso preocupa”, comenta a produtora.
Para aumentar esse engajamento, foi criado um projeto, há dois anos, que oportuniza às mães solo uma capacitação nas artes da lutheria, que é a construção de instrumentos musicais. Essa proposta foi uma das 12 acolhidas pela Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia, entre 86 projetos, e vai ser financiada.
Adriana lembra que Pelotas tem diferentes orquestras, mas não tem luthiers para a construção e conserto de instrumentos musicais para elas. A ideia é capacitar as mães para elas trabalharem junto com o projeto. “Uma mãe engajada é uma criança no projeto. Também dar um ofício muito digno que paga bem e é uma demanda da nossa região.
A escola de luthiers vai começar com as mães do bairro Dunas no próximo mês. “A nossa obrigação é sonhar, a gente vai sonhando e orquestrando o sonho de cada um”, fala Adriana Noronha.