O inédito encontro de Brasil e Pelotas na segunda divisão estadual não será a única consequência do rebaixamento conjunto da dupla. Para além dos efeitos diretos do fracasso esportivo, como a queda significativa de visibilidade e receitas em 2026, o descenso no Gauchão acelera a urgência de encontrar saídas para um futuro viável. Em um ambiente de transformação dos padrões de gestão no futebol brasileiro, representantes de Xavante e Lobo adotam discursos diferentes, mas convergem sobre uma necessidade: é preciso mudar, de alguma forma, modelos administrativos.
Levantamento publicado em novembro pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), Ibesaf, indica a existência de 95 clubes operando como SAF, algo permitido por lei desde 2021. No Rio Grande do Sul, porém, apenas o Futebol com Vida funciona nesse formato. Fundado em 2022 como um projeto para formar atletas, o clube de Viamão é um exemplo da nova realidade. Profissionalizou-se no ano seguinte e subiu para a Série A-2 do Gauchão. Caso não seja rebaixado e não suba à elite na atual temporada, estará em 2026 no mesmo patamar dos centenários representantes pelotenses – já enfrentou o Lobo em 2024.
O reordenamento de forças no cenário nacional é visto como um fenômeno já em andamento. CEO da Footure, empresa especializada em consultoria de mercado para clubes de futebol, Eduardo Dias projeta um panorama muito diferente do atual e diz ser este o período da mais relevante transformação do futebol brasileiro nos últimos 50 anos. “A gente está vivendo a década da maior mudança na ordem de grandeza esportiva e financeira entre os clubes do Brasil, e os clubes estão percebendo que essa mudança toda é uma grande oportunidade”, avalia.

Após o Estadual, Xavante vai jogar a Série D do Brasileirão a partir do dia 12 de abril. Já o Lobo só poderá voltar a atuar em setembro, quando começa a Copinha da FGF (Foto: Jô Folha)
No Bento Freitas, processo mais avançado
Referente ao exercício 2023, o último balanço oficial publicado pelo Grêmio Esportivo Brasil apontava R$ 19,7 milhões como obrigações financeiras de curto prazo (a serem quitadas em até 12 meses). Mas as dívidas totais contraídas pelo Xavante já atingiriam R$ 40 milhões, conforme o presidente Vilmar Xavier disse em entrevista ao A Hora do Sul em outubro. No ano passado, a direção fechou parceria com a Pluri Sports, empresa de consultoria que realiza estudo de viabilidade sobre a transformação do clube em SAF.
O presidente do Conselho Deliberativo (CD), Pablo Chagas, não esconde a delicada situação financeira do Brasil. “Não vemos outra alternativa viável, pelo menos com precedentes em clubes do nosso patamar, que possam servir como referência. Atualmente, nossas receitas não cobrem nossos custos, incluindo os juros da dívida. Além disso, a ideia de uma gestão profissional, ou seja, que siga rigorosamente a cronologia dos processos, e a ‘reinvenção’ da nossa base, essencial para fortalecer nossa identidade, possibilitaria uma reaproximação entre clube e torcida, nosso maior patrimônio”, afirma.
Conforme o presidente do CD, o órgão lidera o processo de estudo a respeito da SAF em conjunto com a direção executiva do clube. Um grupo de trabalho para se aprofundar no tema foi formado no Conselho. Entre as tarefas está a transmissão à Pluri de todas as informações necessárias para uma eventual transição do modelo de gestão. “Seguimos respeitando os processos e etapas, visando uma implementação no médio prazo”, garante Pablo Chagas.
Para virar SAF, o Brasil precisaria de aprovação do Conselho, que anteriormente autorizou a realização dos estudos. Caso cheguem propostas de compra, a associação analisará a viabilidade e, se considerada adequada, submeterá à Assembleia Geral para votação. Todos os sócios adimplentes com direito a voto poderiam participar desse processo. Pablo Chagas estima que os passos sejam concluídos em um período de seis meses a um ano e meio.
Na Boca do Lobo, discurso evita pressa
Já o Esporte Clube Pelotas não publica documentos financeiros em seu site oficial. Portanto, não há qualquer informação pública sobre a situação econômica do Áureo-Cerúleo. Fato é que o clube assinou um contrato até setembro deste ano com as empresas Russell Bedford Brasil e Mirar Contabilidade. As marcas realizaram um diagnóstico do panorama fiscal e o assunto segue em pauta, mas a urgência para um eventual avanço não é a mesma do rival.
O presidente do Conselho Deliberativo, Moacir Elias, diz que qualquer alteração exige muito embasamento. “O clube tem estrutura, história, torcida, pessoas que destinam uma parte do seu tempo e, muitas vezes, uma parte dos seus recursos também para isso. Não acho que se deva entender que esse fato [rebaixamento] seja definidor de se mudar o modelo de gestão. Nós temos que mudar algumas formas, na minha maneira de ver. […] Não temos o direito de colocar em risco uma história como a do Esporte Clube Pelotas”, argumenta.
Segundo o conselheiro e ex-presidente Luis Antônio de Mello Aleixo, designado interlocutor do clube com as empresas, ocorreram avanços em conversas recentes. Por isso, será solicitada ao presidente do CD uma reunião para tratar do assunto. Aleixo cita a desvalorização causada pelo rebaixamento do Lobo, mas diz que o descenso não impede eventuais negócios. E o investimento a ser captado não seria necessariamente via SAF – outros modelos de administração estão em pauta.
“Eu e mais algumas pessoas que estão ajudando muito nisso estamos abrindo diversas frentes, não exclusivamente a SAF, e sim mudança de sistema de gerenciamento, de busca de recursos. Coisas mais modernas. […] Hoje o Pelotas tem uma situação que, se não é espetacular, é razoável, e atrai possíveis investidores. Por isso as pessoas estão querendo conversar com o Pelotas”, explica o ex-presidente.
O que busca um potencial investidor
Para o CEO da Footure, a profissionalização integral é a única maneira de manter a competitividade no longo prazo. Eduardo Dias acredita ser possível que uma entidade associativa opere desse modo. Porém, enxerga um caminho mais complicado. “Precisa ceder alguns espaços, negociar, como é da política normal, e o clube é uma entidade política. Negocia-se um ponto, abre-se mão de outro, é uma construção coletiva e essa coletividade no modelo do futebol de hoje perde muita eficiência”, analisa.
Sob a ótica do especialista, os clubes menores são os que mais precisam aproveitar a oportunidade gerada pelos novos modelos de gestão. “O futebol sempre foi tratado com ‘vamos ganhar o próximo jogo’. Hoje é bem diferente. Ter um projeto, saber que história o clube está contando, qual é a comunidade que ele representa. Tem muitos investidores que buscam: ‘quero um clube com nome de cidade’, por exemplo. Isso é um ativo, afinal o clube já conecta com a comunidade. Em Pelotas, o Pelotas e o Brasil são muito bem conectados com a comunidade”, diz Eduardo.
Para ele, há padrões de interesse de investidores. Densidade demográfica e histórico de atletas formados na região do clube cujas ações estão à venda são alguns deles. Ainda assim, o CEO da Footure considera diverso o leque de perfis de pessoas ou empresas que investem nesse mercado. Na Zona Sul, a proximidade com Argentina e Uruguai poderia ser um fator relevante, por exemplo. “Outro ponto muito importante é o calendário. Como que eu acesso uma vaga para a Copa do Brasil? Como que eu acesso uma Série D no calendário desse estado, dessa federação? O quanto essa federação é amigável à chegada de uma SAF? Então são diversos pontos que têm que ser analisados”, completa.
O que diz quem é contra a SAF
“Fora da realidade”, resume o presidente do Guarany, Tato Moreira, quando perguntado sobre a chance de implementação de uma SAF em Bagé. Em 2019, quando o dirigente assumiu o cargo máximo do Alvirrubro, o time disputava a terceira divisão estadual. Para 2026, o Índio tem assegurada a terceira participação consecutiva na elite do Gauchão e a segunda na Série D do Brasileirão. O clube da fronteira ainda estreou na Copa do Brasil, avançando uma fase, e investe em qualificação estrutural no estádio Estrela D’Alva.
Tato Moreira é um presidente remunerado. Recebe salário e se dedica integralmente à gestão do clube. Apesar da peculiaridade envolvendo o mandatário, que é contrário à SAF, trata-se de uma entidade associativa. “Quem bota dinheiro quer ganhar dinheiro. E para se ganhar dinheiro em time do interior, tem que fazer um processo como o Guarany fez. Se organizar internamente, pagar suas dívidas trabalhistas. O Guarany ainda tem dívida, mas paga suas dívidas. Contrata jogar e pode pagar”, diz o dirigente.
Para o presidente do Guarany, o mais coerente é ganhar a confiança dos patrocinadores, aumentar o quadro social e oferecer uma experiência positiva ao torcedor. “Agora a gente tem mais de 2,1 mil sócios. Em 2022, tinha 150 sócios mesmo na primeira divisão. Organiza os processos da parte comercial, bota gente que entenda, transforma o jogo em um evento, que o torcedor vá um pouco mais cedo, que se sente no lugar, que ele vá no banheiro que esteja limpo, que ele coma um lanche que não seja os olhos da cara, que ele tome a água e o refrigerante que esteja gelado”, exemplifica Tato.
SAF no país
A transformação de clubes brasileiros em Sociedades Anônimas do Futebol passou a ser permitida em agosto de 2021, quando a Lei 14.193/2021 foi aprovada no Congresso. A legislação incentiva a migração da operação de clubes de associações civis sem fins lucrativos para associações empresariais.
A lei obriga que a associação permaneça com no mínimo 10% das ações da SAF. Esse percentual garante o domínio sobre o patrimônio material e a marca do clube. Cores, hino e escudos, por exemplo, não podem ser alterados pela SAF, apenas pela associação. Vale lembrar que o caso do Bragantino, transformado pela Red Bull em 2019, aconteceu antes da promulgação da chamada Lei da SAF e não se enquadra nos mesmos critérios.