Nascido e criado no Guabiroba, mas radicado em São Paulo desde 2018, o rapper Zudizilla retornou a Pelotas para fazer um show comemorativo dos dez anos do álbum Faça a Coisa Certa, no dia 19 de dezembro. O disco que projetou o cantor nacionalmente nasceu de uma característica única: a potência das letras sobre as vivências de um homem negro gaúcho da periferia, somada à força do cuidado estético empregada na obra.
O diferencial do álbum se tornou evidente com seu lançamento em vinil. Mais do que a qualidade das faixas, impressionava que um rap independente, criado por um artista amador no Sul do Brasil, tivesse ganhado vida nesse formato. Rapidamente, Faça a Coisa Certa começou a ser tocado por DJs em todo o país, conquistando seu espaço no cenário musical.
Hoje, Zudizilla tem quatro álbuns lançados, com a participação de grandes nomes do hip hop e do rap nacional, como Emicida, em diversas músicas, e se encaminha para o lançamento do quinto trabalho em 2026. Mas, quando volta para Pelotas, Julio César Farias não é conhecido somente pelo nome artístico. Ele é acolhido novamente por amigos, colegas e vizinhos que participaram da sua criação nas ruas do Guabiroba e, de alguma forma, no desenvolvimento da sua trajetória.
“Eu fico muito feliz por Pelotas me abraçar nos meus shows, comprar o meu barulho, porque me viram por aí. Muito antes de imaginar que eu ia fazer grafite. É aquele lance da comunidade: eu fui criado pelos meus vizinhos e instruído pela cidade inteira”, diz.
Como grande parte dos meninos da periferia, Zudizilla era filho de mãe solo e passava boa parte do tempo jogando futebol com os amigos. Foi um atropelamento ocorrido quando ele tinha dez anos que o cantor considera um ponto de virada na sua vida, que culminaria nas músicas anos depois.
“Eu fiquei um tempão em uma cama e, nesse período, desenvolvi muito o meu desenho, que foi me abrindo possibilidades de imaginação. E o desenho foi me aproximando de outros grupos.” O novo grupo era formado por jovens voltados ao rock e à literatura. Com os novos amigos, Julio César foi introduzido à leitura e percebeu que havia grandes possibilidades para além das quadras do Guabiroba.
“A gente lia Saramago naquela época, e isso me abriu outra porta, que enxerguei que eu poderia passar. E eu me imaginava um artista plástico, um designer de sucesso.” O primeiro passo para realizar o sonho foi a formação no técnico em Comunicação Visual no IFsul e, posteriormente, a graduação em Artes Visuais na UFPel. Enquanto cursava a faculdade, Zudizilla pintava telas e grafitava com artistas locais.
Foi nas sessões de grafite, geralmente embaladas ao som de rap, que Zudizilla descobriu um novo talento: a facilidade de criar letras e rimar de improviso. “E assim eu entro na música. A gente ia fazendo e mandava para os amigos ouvirem, sem pretensão nenhuma”, conta. Ao unir a música com a arte visual, o artista começou a criar capas de CDs para os sons amadores feitos pelos amigos. “As primeiras capas, mix tapes, eu fiz para o meu portfólio [como designer].”

Cantor já se apresentou em mais de dez países ao redor do mundo (Foto: Caio Henrique)
A multiplicidade de talentos chamou a atenção, e Zudizilla foi convidado a integrar a Banca CNR (Consciência Negra Rappers), onde começou a se apresentar nos primeiros shows da região. Com a facilidade para compor as próprias letras e a experiência dos palcos, o artista resolveu produzir e lançar a mixtape Luz, composta por 20 faixas.
“No Luz, a gente experimentou produção executiva, registro de músicas, cuidado com capa, camiseta, lançamento. A gente fez o primeiro lançamento da mixtape no João Gilberto, quando ainda era um bar super rô rô [elitizado].”
O salto na qualidade técnica e visual
A produção quase artesanal de uma obra inteira, com capa, clipes e documentário, proporcionou a Zudizilla o conhecimento necessário para transformar seu próximo álbum em sucesso nas paradas de rap. O diferencial decisivo que faltava para o Faça a Coisa Certa surgiu com a ideia do produtor musical Mano Val Robe de gravar as faixas em vinil.
“Aí foi onde a gente conseguiu alcançar o Brasil por um viés que ninguém estava caminhando. Tudo isso que a gente pensava era em âmbito municipal. A gente queria marcar o nosso nome na história de Pelotas, quiçá do Rio Grande do Sul, mas não fazia a mínima ideia de que isso ia chegar no Brasil inteiro”, conta Zudizilla.
Ter um álbum em vinil não só posiciona o artista entre produções duradouras, como também assegura atenção à qualidade técnica do som e à estética da obra. “É um disco que é áspero, tem aquele granulado, porque ele é feito dessa forma. E esse cuidado estético vai me colocando num outro patamar.” Com esse cuidado técnico, já são quatro álbuns, centenas de shows pelo Brasil e por pelo menos dez países ao redor do mundo.
Letras das vivências como homem negro gaúcho
Há oito anos em São Paulo, Zudizilla conta que suas letras não buscam exaltar o Rio Grande do Sul ou Pelotas, mas continuam sendo da consciência de um homem negro gaúcho e pelotense.
“Eu acho que não tenho propriedade para bater no peito e dizer que sou do Sul, porque ainda sou a pessoa preta, e no Sul tem muita gente que não me quer nem vivo. Mas eu não posso esquecer que nasci nesse lugar, e é a partir daqui que teço minhas observações vividas”, diz.
Sem bairrismo, o artista expressa gratidão à cidade e credita a Pelotas o sucesso contínuo de Faça a Coisa Certa, mesmo passados dez anos. “Não é o Brasil que mantém esse disco, são as pessoas saindo daqui de Pelotas, indo para outros lugares e enchendo o saco das pessoas dizendo: ‘Irmão, escuta só isso aqui que vai mudar a tua vida.’”
Próximo álbum e referências a Pelotas
Zudizilla adianta que o próximo álbum trará referências ainda mais explícitas às suas origens em Pelotas. Embora músicas como Salve já evidenciem sua ligação com a cidade ao citar diversos bairros, o novo trabalho abordará essa questão de forma mais intencional e proposital.
“Eu vou trazer elementos que a galera vai identificar sonoramente, que são de Pelotas e do Extremo Sul. Estou numa pesquisa muito ferrenha, imerso nesse projeto, e já tem muita coisa construída.”