Fundo da Criança teve mais de R$ 1,1 milhão transferido irregularmente

Investigação

Fundo da Criança teve mais de R$ 1,1 milhão transferido irregularmente

Repasses feitos entre 2021 e 2022 foram direcionados a despesas vedadas pelo Conanda; Promotoria pede a restituição do valor pela prefeitura

Por

Fundo da Criança teve mais de R$ 1,1 milhão transferido irregularmente
Recurso deveria ser aplicado em projetos em prol de crianças e adolescentes. (Foto: Jô Folha)

A 1ª Promotoria de Justiça Especializada de Pelotas abriu um inquérito para apurar o uso irregular de recursos do Fundo da Criança e do Adolescente referente ao período entre 2021 e 2022. Na investigação, foi identificado o repasse irregular de R$ 1.154.896,53 a 24 entidades sociais, sem convênios firmados, prestação de contas ou a documentação necessária para a liberação dos pagamentos. Diante da transferência dos recursos pela prefeitura sem qualquer fiscalização, o Ministério Público ordenou ao município a restituição do valor ao fundo.

Batizada de “Operação Oliver”, em referência ao romance de Charles Dickens sobre um menino órfão, a investigação levantou uma série de pagamentos com valores variados entre R$ 2,5 mil e R$ 130 mil, sem comprovação adequada do emprego do recurso pelas entidades. Conforme as justificativas apresentadas pelo Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (Comdica) para a liberação da verba pela prefeitura, o dinheiro seria aplicado em gastos diversos, como na aquisição de cestas básicas, materiais escolares, na realização de confraternizações em datas festivas e na reforma de imóveis.

“Verificou-se uma série de irregularidades formais e materiais relacionadas às despesas do período em questão”, diz o inquérito assinado pelo promotor de Justiça José Alexandre Zachia Alan e pela promotora da Infância e da Juventude, Luciara Robe da Silveira. Soma-se à falta de prestação de contas o desvio de finalidade no uso dos recursos.

Nos dois anos analisados pelo Ministério Público, foi identificado um grupo de entidades que recebeu entre R$ 20 mil e R$ 30 mil, outro que obteve repasses entre R$ 40 mil e R$ 67 mil, e ainda uma instituição beneficiada com mais de R$ 258 mil. Mesmo assim, até os valores mais elevados foram destinados à compra de itens assistencialistas, como cestas básicas, ou materiais para festividades, como panetones, artigos de festa e cartões de Natal.

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) delimita que o fundo deve ser utilizado exclusivamente no desenvolvimento de programas estruturados e voltados à promoção, defesa e atendimento dos direitos de crianças e adolescentes, bem como para ações de acolhimento em regime de guarda e para o fortalecimento do Sistema de Garantias desses direitos.

“A Resolução [do Conanda] acima mencionada confere ao fundo finalidade de execução de políticas públicas bastante bem delineadas e não para a distribuição indiscriminada de dinheiro entre entidades interessadas”, diz trecho do processo. A ação destaca que, embora possam ser consideradas iniciativas louváveis, os valores do fundo não podem ser empregados em ações de cunho assistencialista ou de caridade.

Falta de transparência e irregularidades

Mantido majoritariamente por recursos destinados por pessoas físicas e empresas por meio do Imposto de Renda, o Fundo da Criança e do Adolescente tem sua aplicação definida pelo Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, em conformidade com as diretrizes estabelecidas pelo Conanda. Para acessar esses recursos, a entidade interessada deve apresentar o edital do projeto para o qual solicita financiamento, cabendo ao Comdica deliberar sobre a concessão do benefício e encaminhar a resolução ao município.

Conforme o inquérito do MP, nenhum desses procedimentos era seguido pelo Comdica, nem fiscalizados pelo município. Para receber valores expressivos — geralmente em parcelas de R$ 10 mil —, era encaminhado à prefeitura apenas um documento digital informando a suposta aprovação do repasse pelo Conselho, sem assinatura, comprovantes ou notas fiscais.

“Se reuniam, decidiam e nem tinha ata, só mandavam avisando ao município que a despesa era aquela ali e pronto, como votaram ou não votaram, de que jeito que foi ninguém sabe”, diz o promotor de Justiça José Alexandre Zachia Alan. Não existia, igualmente, qualquer documentação que demonstrasse a forma de aplicação dos recursos pelas entidades ou a forma de fiscalização pela prefeitura.

“As prestações de contas eram feitas pelo conselho, ninguém do município, nem um órgão técnico, um contador ou controlador, ninguém colocava a mão nisso aí”, destaca Zachia Alan.

Restituição ao fundo

Diante da “negligência” do município ao realizar repasses indiscriminados do fundo, sem observar as finalidades específicas previstas pelo Conanda, o Ministério Público determinou a restituição do valor de R$ 1.154.896,53 ao fundo. Sem que as partes chegassem a um acordo, a medida foi ajuizada e deverá ser julgada pela Vara da Fazenda ou pela Vara da Infância e da Juventude.

TAC

Para regularizar a tramitação dos recursos do fundo, o município, por meio do prefeito Fernando Marroni (PT), assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), comprometendo-se com o Ministério Público a submeter todo pedido de repasse do Comdica à análise técnica prévia da prefeitura.

Em nota, a prefeitura declara que “no compromisso firmado pelo prefeito Fernando Marroni o município, por meio da Procuradoria Geral (PGM), deve fazer uma análise do repasse – o que corresponde a observar se o procedimento prévio a cargo do Conselho atende à legalidade, finalidade e o interesse público e se a entidade a ser beneficiada com os recursos possui regularidade jurídica, contábil, fiscal e trabalhista”.

Sobre a restituição dos valores transferidos do fundo entre 2021 e 2022, a declaração afirma que, no entendimento do município, quando ocorreu o repasse a decisão do Conselho era soberana e incumbia ao poder público somente fazer o pagamento. “Se houve erro ou ilegalidade, o ressarcimento não deve ser feito pelos cofres públicos, mas pelas instituições e entidades beneficiadas com o repasse dos valores”, afirma a procuradora-geral do município, Cristiane Grequi Cardoso.

Diante dessa divergência, o MP passou a ajuizar várias ações civis públicas no sentido de que sejam restituídos os valores que, no entendimento dos promotores, foram pagos irregularmente.

Comdica

O presidente do Comdica em 2022, Maiquel Fouchy afirma que os repasses para eventos comemorativos, aquisição de cestas básicas e material escolar foram aprovados em plenária do Conselho. O ex-presidente argumenta ainda que todas as resoluções passavam pela avaliação da prefeitura e da Secretaria de Assistência Social. “Quando identificavam algo que não atendia as orientações do Conanda, a secretaria bloqueava”.

Segundo Fouchy, o conselho desconhecia qualquer irregularidade no formato de repasse das verbas e nos destinos dos recursos, ainda que essas práticas contrariassem o que está previsto pelo Conanda. “O que sabíamos é que haviam questões a serem adequadas, nada mais”, diz sobre o bloqueio da movimentação financeira determinado pelo Ministério Público e a exigência da promotoria de que programas sejam inscritos e aprovados em edital para poderem receber recursos.

Continuidade da operação Oliver

No inquérito, o Ministério Público detalha não ter inserido as entidades sociais na ação pela compreensão de que as instituições agiram de boa-fé ao receber os recursos públicos, “agindo de acordo com as regras que lhe foram dadas pela municipalidade”.

A Operação Oliver continua em andamento; nas etapas seguintes, serão analisados todos os gastos efetuados pelas entidades com verbas do Fundo da Criança e do Adolescente. “Se a gente achar irregularidades das entidades, nós vamos fazer essas entidades devolver dinheiro para o município e [consequentemente] para o fundo”, diz Zachia Alan.

Acompanhe
nossas
redes sociais