Durante os 18 meses em que esteve na fila de espera para receber um pulmão, Edelbert Lörsch se dedicava a produzir do leito da Santa Casa de Porto Alegre informativos semanais com dados e esclarecimentos sobre a doação de órgãos.
O trabalho seguiu firme mesmo quando a fibrose pulmonar avançou a ponto de ele não conseguir mais se alimentar. E continuou ainda mais intenso após a realização do transplante. Hoje Lörsch coordena a Associação Nacional de Pré e Pós-Transplantados (ANPPT).
“Eu tenho um compromisso com a sociedade, e é lutar pela causa da doação de órgãos. É uma maneira de eu pagar pelo pulmão que recebi”, diz. Em estado terminal da doença, no dia 5 de novembro de 2022, Lörsch se despediu da família na UTI.
Na madrugada do dia 6, ao ser sacudido pela equipe médica, ele pensou estar passando pelo procedimento de reanimação cardíaca. “Eu perguntei para uma das médicas: ‘vocês estão me reanimando?’ E ela disse: ‘não, nós viemos te avisar que o teu pulmão chegou’”, relata.
Na manhã do mesmo dia 6, Lörsch passou pelo transplante bilateral de pulmão com os órgãos doados pela família de um jovem que havia morrido em um acidente de trânsito no Paraná. “Essa doação salvou a minha vida e de mais seis pessoas”, conta.
O diagnóstico
Conhecido carinhosamente como professor Kruger (antes de alterar seu sobrenome), Edelbert lecionou durante 43 anos no Instituto Federal Sul-riograndense (IFSul). Com uma vida “regrada”, ele praticava exercícios físicos regularmente, cuidava da alimentação e nunca foi fumante.
No entanto, os hábitos saudáveis não impediram que ele desenvolvesse uma fibrose pulmonar, atribuída pelos médicos à resposta agressiva de anticorpos a um quadro de alergias respiratórias.
Sem resposta efetiva ao tratamento paliativo e com a rápida evolução da patologia, que tem como principal sintoma a constante falta de ar, em 2021, cinco anos após o diagnóstico, ele descobriu que a única alternativa para continuar vivendo seria um transplante de pulmão.

Antes do transplantes, Edelbert dependia de um cilindro de oxigênio para respirar. (Foto: arquivo pessoal)
“Estar em uma lista de espera com uma doença progredindo a cada dia é muito difícil. Toda vez que o telefone toca, tu pensa: ‘é agora’ e não era. Eu fiquei com uma raiva daqueles telemarketings”, conta.
A espera
O choque de entrar na fila de transplante aos poucos foi sendo substituído por outra dura realidade: o número reduzido de doações diante da grande quantidade de pessoas na espera.
Edelbert Lörsch relembra que, ao chegar na Santa Casa de Porto Alegre, somente no grupo de reabilitação pulmonar dele havia cerca de 60 pessoas aguardando pelo transplante de pulmão.
“Eu olhava aquele povo todo e pensava: ‘eu não vou transplantar nunca’. Por isso vi que precisava fazer campanha pela doação de órgãos, porque eu não via ninguém falando sobre isso e aí me dei conta de que alguma coisa tinha que ser feita”.
A criação da ANPPT
Segundo Lörsch, mesmo diante da frequente perda de pacientes do mesmo grupo devido ao tempo de espera, quando ele iniciou o movimento pela conscientização da doação de órgãos, a resistência em participar partiu dos próprios potenciais receptores. “Os pré-transplantados não acreditavam em campanhas. Eles estavam em uma situação de esperar sentado o órgão chegar”, ressalta.
Aos poucos e com a insistência do professor, os companheiros (as) de espera também se tornaram ativos na mobilização em prol da doação de órgãos. E além dos informativos semanais, Lörsch iniciou o processo para a criação da Associação Nacional de Pré e Pós-Transplantados (ANPPT).

Palestra sobre doação de órgãos para o Ministério Público do RS (Foto: arquivo pessoal)
“A minha luta é para que ninguém espere mais de três meses em uma fila de transplantes. Tem uma senhora esperando há seis anos, vivendo em situação precária e no fio da navalha”, diz.
Entre os principais propósitos da ANPPT está o estímulo e o desenvolvimento de atividades relacionadas com os transplantes de órgãos e tecidos.
Assim como prestar orientações e apoio aos transplantados ou pacientes indicados para transplante. Hoje a entidade conta com 150 associados. “Toda a nossa função hoje é sensibilizar a sociedade para a importância da doação de órgãos”.
Por que muitos dizem não para a doação?
A negativa familiar é um dos principais motivos para que um órgão não seja doado no Brasil. E segundo Lorsch, o fator primário para a recusa é o desconhecimento sobre o processo de retirada dos órgãos e a realização de transplantes.
“As pessoas têm receios, acham que o ente vai ficar retaliado e isso não é verdade, é como se fosse uma cirurgia normal. E a doação só ocorre com morte encefálica”.
A disseminação de informações é fundamental para que a família não precise refletir sobre a autorização somente no momento da decisão. Isso porque a circunstância do luto somada à dúvida sobre o desejo do paciente contribui para a negativa.
“Hoje a resposta final é da família. Não adianta eu me declarar doador se a família disser ‘não’, e a coisa mais difícil é decidir no momento de luto. As pessoas têm que pensar sobre isso antes”. Conforme dados do Ministério da Saúde, em 2023, 42,5% das famílias não aceitaram doar os órgãos do paciente falecido.

Lançamento no Estado da Campanha o Amor Vive. (Foto: arquivo pessoal)
Lörsch aponta que no país são 78 mil pessoas esperando por algum órgão, sendo mais de três mil no Rio Grande do Sul. “O número de pessoas em lista de espera tem crescido em uma velocidade espantosa, tem gente morrendo na espera. São pessoas que poderiam ser produtivas para o país, para a sua comunidade. Em pouco tempo após o transplante já estamos na ativa”, ressalta.
A vida após o transplante
Transplantado há pouco mais de dois anos, Edelbert Lörsch, hoje com 70 anos, leva uma vida normal. A não ser por alguns cuidados de rotina, o professor aposentado destaca que consegue inclusive subir escadas sem dificuldades. Quando tinha os pulmões com fibrose, até para escovar os dentes era necessário um enorme esforço.
“A doação de órgãos é a vida após a morte. É continuidade da vida, eu estou aqui com os pulmões de um jovem e estou em uma excelente fase de vida. Não tem porquê nós desperdiçarmos o nosso corpo na terra em putrefação”.

Lörsch logo após ter passado pelo transplante. (Foto: arquivo pessoal)
Além dele mesmo ser doador de órgãos, Lörsch quer continuar contribuindo com a educação para além dos 43 anos como professor. Para isso ele deseja que seu corpo seja doado após a morte para a Faculdade de Medicina da UFPel.
“Por que não continuar ajudando a comunidade estudantil? O meu corpo pode servir para estudos. Depois de toda uma existência de trabalho, de fazer a diferença, eu acho um desperdício simplesmente cair em um buraco”.
Deseja ser um potencial doador de órgãos?
Atualmente quem deseja ser um doador de órgãos pode oficializar essa vontade de forma ágil e prática. Por meio da Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO), é possível formalizar o interesse com um documento oficial, feito digitalmente em qualquer um dos 8.344 cartórios de notas do Brasil e de forma gratuita.
Para realizar a AEDO, o interessado preenche um formulário diretamente no site, que é recepcionado pelo cartório de notas selecionado.
Em seguida, o tabelião agenda uma videoconferência para identificar o interessado e coletar a manifestação de vontade. O documento fica disponível para consulta pelos responsáveis do Sistema Nacional de Transplantes.
“Porém é importante reforçar que a família tem a última palavra. Importante que o interessado em ser doador converse também com a família”, acrescenta Lörsch.
Na região Sul do Estado, em 2024 foram registradas 68 notificações para doação de órgãos. Desse total, apenas 14 se concretizaram, enquanto 25 foram recusadas pelas famílias e 21 apresentaram contraindicações médicas.