No dia que marca 1 ano do início da maior tragédia ambiental do Rio Grande do Sul, a pergunta que todo pelotense, vítima ou não da enchente, se faz é: se outro evento climático como este acontecer hoje, estaremos protegidos? Para responder a esse questionamento, o Jornal A Hora do Sul conversou com autoridades e especialistas com o intuito de entender qual caminho para resiliência Pelotas está trilhando.
O prefeito Fernando Marroni (PT) é direto: “O problema é de fora para dentro, a enchente do canal, a enchente da lagoa. Sobre isso, nós estamos, em termos, desprotegidos. Estamos igual como estávamos antes da enchente”. No entanto, projetos de melhorias já foram enviados ao Governo do RS através do Plano Rio Grande e ações internas para mitigação estão sendo realizadas.
Segundo Milton Martins, Secretário de Defesa Civil, Pelotas está iniciando uma aproximação e integração entre as secretarias visando não só a modernização dos instrumentos de monitoramento, em parceria com o Sanep, a Secretaria de Serviços Urbanos e a Secretaria de Obras, mas também a atualização dos sistemas meteorológicos e hidrológicos em conjunto com a Universidade Federal (UFPel). Porém, ele admite que o município ainda não teve tempo de finalizar os projetos para melhorias estruturais na cidade. “Um projeto estrutural demanda tempo para ser executado”.
Para o prefeito, o equilíbrio entre o crescimento urbano e a sustentabilidade é um desafio que demanda medidas ousadas e estratégicas. “Nossa perspectiva é fazer uma revisão do Plano Diretor e preservar as áreas que estão abaixo da cota de quatro metros. Induzir a cidade para crescer nas áreas altas é a alternativa mais viável”, explica. Marroni afirma que o município está atento às lições do passado, por isso tem priorizado a proteção das áreas de risco, como a região abaixo da cota de São Gonçalo, onde os diques existentes, alguns com dois metros, necessitam ser elevados para quatro metros. “Isso depende dos recursos do governo do Estado e dos aportes do fundo de reconstrução”, completa o prefeito, que defende a urgência dessas obras.
No âmbito da drenagem, o diretor-presidente do Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas (Sanep), Ellemar Wojahn, detalha os investimentos que estão em andamento para fortalecer o sistema. No dia 4 de abril, prefeitura e autarquia assinaram os contratos para a reforma do canal do pepino e para obras de drenagem no bairro Cruzeiro. Além disso, outras obras incluem o reforço de sete casas de bombas, com aquisição de equipamentos e motores, a limpeza dos macrocanais, além da reconstrução dos diques, sobretudo no Laranjal e no entorno da casa de bombas. “Estamos aguardando os recursos para o dique. São cerca de R$1 9 milhões para os diques e mais R$ 4 a R$ 5 milhões para modernizar as casas de bombas”, alerta Wojahn, evidenciando a dependência dos investimentos provenientes dos recursos da reconstrução.
Marroni ainda destaca que o município, em razão do decreto de emergência assinado no dia 7 de abril pelas chuvas intensas e o colapso do sistema de drenagem, está alinhando ações de conscientização. “No próximo mês vamos lançar uma campanha e contamos com a ajuda de todos”.
Recursos para reconstrução
A verba que a prefeitura aguarda para iniciar as obras no dique e reforçar as casas de bombas é proveniente do Plano Rio Grande, o Programa estadual de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática. O sistema de proteção contra cheias no Laranjal, além de obras em avenidas e intervenções em escolas danificadas pela enchente, são três dos onze projetos aprovados no Plano. Os recursos para dar sequência nessas obras ainda não foram repassados à prefeitura. “A minha opinião é que está demorando muito para que sejam liberados esses recursos do Fundo de reconstrução, para proteger efetivamente essas áreas mais sensíveis”, ressalta Marroni.
Diante desses avanços, permanece, porém, um clima de cautela. Se, por um lado, a integração entre os diversos setores e a ampliação dos investimentos sinalizam um comprometimento com a segurança e o bem-estar dos cidadãos, por outro, a dependência de recursos estaduais e federais e os ajustes necessários no Plano Diretor mostram que o caminho ainda é longo.
O que dizem os especialistas
Como apresentado na edição de ontem, Tamara Beskow, Henrique Repinaldo e Márcio Facin foram peças chave na sala de situação em 2024. Hoje eles respondem sobre os avanços, obstáculos e lições aprendidas com esse momento.
Estamos preparados para viver outra enchente como essa?
- Tamara Beskow – Hidróloga, professora na UFPel
Mesmo com todos os avanços que possamos alcançar em monitoramento e infraestrutura, nunca estaremos 100% preparados para enfrentar um desastre da magnitude do que ocorreu no Rio Grande do Sul. Eventos como esse são, por natureza, raros e extremos. Em 2023, vivenciamos um grande evento, e em 2024, outro ainda mais impactante. Até mesmo as estruturas e sistemas mais bem planejados têm suas limitações diante de situações tão excepcionais. Por isso, além de obras e monitoramento, é fundamental investir continuamente em planejamento, gestão de risco e fortalecimento das redes de resposta.
- Henrique Repinaldo – Meteorologista
Ano passado, existia uma carência gigantesca de observações, tanto meteorológicas como hidrológicas. Muitas vezes não tínhamos nenhum radar meteorológico funcionando, e isso para um sistema de previsão é péssimo. Então, a gente acabou tendo todo um esforço para fazer todas as previsões e as estimativas da inundação com o que tínhamos naquele momento. Muitas vezes as observações eram feitas por telefone quando ligávamos para determinada pessoa em determinada cidade e pedia para ela fazer uma observação, tirar uma foto para nós. Mandar uma foto do rio, uma foto da Laguna dos Patos, como que estava a ondulação na Laguna dos Patos para a gente estimar o vento. Algumas vezes conseguimos o apoio de helicópteros para ir na Laguna e ver por onde andava aquela mancha de inundação que estava chegando na nossa cidade. A partir dessas observações a gente estimava a direção do vento pela ondulação. Era bem precário o sistema de observação e previsão que tínhamos no momento.
Hoje em dia evoluímos um pouco, ainda não temos o ideal na região, mas a gente tem observado esforços do governo do Estado, da defesa civil estadual também na compra de novas estações hidrometeorológicas, na compra de radares meteorológicos, inclusive um aqui para a região de Pelotas, além dos esforços de pesquisadores. Existem diversos projetos em que estão se trabalhando para comprar estações para a região e criar protótipos de sistemas de monitoramento, previsão e alerta em tempo real.
- Marcio Facin – Coordenador Regional de Defesa Civil
Estamos mais preparados do que antes, mas ainda vamos avançar. Avançamos muito com a capacitação de coordenadores municipais e suas equipes, com a ampliação do efetivo da coordenadoria regional — que passou de dois para sete militares estaduais — e com o aprofundamento de ações conjuntas com universidades e instituições da região. No entanto, os eventos extremos têm mostrado que precisamos investir continuamente em estrutura, prevenção e principalmente na manutenção de nosso exemplar integração.
Em breve, pretendemos anunciar uma nova sede da Coordenadoria Regional, ao qual será mais um dos marcos neste avanço da Defesa Civil do RS.
O que ainda podemos melhorar para o enfrentamento de situações extremas?
- Tamara Beskow
Se realmente queremos construir uma região resiliente, é urgente ampliar os investimentos em monitoramento meteorológico e hidrológico. Não há como prever inundações com antecedência e precisão se desconhecemos, em tempo real, as condições dos nossos mananciais. Monitorar melhor significa conhecer melhor — e isso é o ponto de partida para qualquer ação eficaz de prevenção, alerta e resposta a eventos extremos. É importante compreender, no entanto, que o monitoramento e a previsão não impedem que eventos extremos aconteçam; eles são, sim, ferramentas fundamentais para minimizar seus impactos, proteger vidas e orientar, de forma mais eficiente, a gestão da crise.
- Henrique Repinaldo
Estamos caminhando para uma melhora, mas ainda há muito que evoluir, principalmente também nas cidades, nas drenagens da cidade, nas ocupações das cidades. Então é todo um esforço em conjunto, tanto do poder público como da academia.
- Marcio Facin
Precisamos consolidar a cultura de prevenção. Isso passa por um trabalho forte de educação ambiental, em todos os níveis de nossa sociedade, capacitação constante, estrutura técnica e humana adequada nos municípios, fortalecimento das redes de alerta e aproximação maior com a comunidade. Um exemplo do que temos feito é o seminário que realizaremos no dia 20 de maio, no âmbito da Câmara Técnica de Resiliência e Desenvolvimento da Agência Regional da Zona Sul, reunindo representantes da UFPel, Furg, Defesa Civil Estadual, Secretaria Estadual de Defesa Civil de Santa Catarina e forças locais. Vamos refletir e planejar de forma técnica, integrada e prática. Esse é o caminho.
Qual a principal lição que fica dessa experiência?
- Tamara Beskow
Como pesquisadora, é impossível não reconhecer a dedicação voluntária e incansável de tantos colegas durante a crise. Uma das grandes lições que ficam é que a ciência precisa ser valorizada e incorporada de forma contínua na gestão de riscos. A ciência não apenas ajuda a entender o que está acontecendo, mas também permite antecipar cenários, orientar decisões e proteger as comunidades. Investir em pesquisa, monitoramento e tecnologia é investir em prevenção, segurança e na construção de comunidades mais resilientes frente aos eventos extremos que tendem a se tornar cada vez mais frequentes.
- Henrique Repinaldo
Não podemos esperar mais, já passou do tempo de esperar para investir nessa adaptação climática, então investimentos nessa questão que eu já comentei de observação meteorológica, de sistemas de previsão, de sistemas de alerta, conscientizar a população em como proceder diante de um alerta emitido, né? A pessoa hoje em dia não sabe se diante do alerta eu posso fazer um evento a céu aberto, tenho que guardar meu carro, coisas simples do nosso cotidiano, né? Então há que também ter um esclarecimento para a população nesse sentido, então não há mais como esperar para a gente se adaptar, porque os eventos, eles estão, esses eventos extremos estão cada vez mais frequentes. E outra lição que fica e que fica da sala de situação, em que tivemos resultados aí, que podemos considerar que foram bons porque não tivemos vítimas aqui na região, é o trabalho, o trabalho em conjunto que ocorreu entre diversos setores da academia e os diversos setores do poder público reunidos numa mesma sala, trabalhando em conjunto, ninguém queria parecer mais que a outra pessoa. Então o trabalho em conjunto desses diversos setores foi essencial para o sucesso da nossa sala de situação.
- Marcio Facin
A principal lição é que ninguém enfrenta um desastre sozinho. O que salvou vidas e amenizou danos foi a união entre prefeituras, lideranças estaduais e federais, Universidades, Defesa Civil, forças de segurança, imprensa, voluntários e a população. Integração é a palavra-chave. Ela precisa ser permanente, antes, durante e depois das crises. E é nisso que estamos investindo fortemente.