Sala de Situação evitou tragédia em Pelotas na enchente de 2024

Evento climático

Sala de Situação evitou tragédia em Pelotas na enchente de 2024

Com dados científicos e ação integrada, operação reuniu especialistas, militares e agentes públicos para proteger a cidade da elevação das águas

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Sala de Situação evitou tragédia em Pelotas na enchente de 2024
Trabalho integrado do local permitiu um fluxo constante e preciso de informações para a realização de ações coordenadas. (Foto: Gustavo Vara)

Há um ano, enquanto as águas dos mananciais de Pelotas subiam sem trégua, a comunidade vivia um clima de apreensão e dúvidas sobre a enchente. Em meio às incertezas, uma iniciativa mudou o rumo da crise: a Sala de Situação, montada no 9º Batalhão de Infantaria Motorizado, reuniu especialistas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), militares e agentes públicos em uma operação inédita de monitoramento e tomada de decisões.

No dia 8 de maio de 2024, a Lagoa dos Patos registrou um nível de 2,12 metros — quase um metro acima da sua cota de inundação. No mesmo dia, a prefeitura anunciou a criação da Sala de Situação. A medida emergencial visava reunir forças de segurança e profissionais de diversas áreas em um único espaço, ao concentrar os encontros técnicos e planejar medidas de enfrentamento à crise climática em Pelotas e região.

Segundo o coordenador da Defesa Civil Regional, coronel Márcio Facin, a sobrecarga de sistemas de contenção e drenagem em outros lugares do RS foi um sinal de alerta. A partir daí, se intensificaram os contatos com a Sala de Situação Estadual e com os segmentos científicos da região, tais como profissionais da meteorologia, hidrologia, engenharia, oceanografia, matemática, física, cartografia, entre outros. “Estes foram imprescindíveis e permaneceram todo o tempo sentados ao nosso lado, voluntariamente”, avalia.

O trabalho coletivo e integrado permitiu um fluxo constante e preciso de informações, com ações coordenadas entre as instituições públicas dos municípios afetados pela enchente. Para Facin, sem esse espaço de interação, a resposta não teria a mesma qualidade. “A sala funcionou como um verdadeiro cérebro coletivo no momento da crise.”

Hidrologia ganha a cena

Outra figura importante daquele período foi da hidróloga da UFPel, Tamara Beskow. Desde setembro de 2023, sua equipe já atuava no gerenciamento de rios e arroios. Com as chuvas intensas de abril e maio, perceberam que as águas chegariam à região Sul e começaram a instalar réguas para monitoramento. Sem dados históricos públicos sobre a cheia de 1941, a cota daquela inundação (2,88m) foi recalculada a partir de uma foto antiga. Com isso, se projetou que o nível poderia chegar a 3,30m — o que ultrapassaria os diques da cidade.

Foram feitos dois cenários: 1) se os diques aguentassem e a água não transbordasse; 2) se os diques não aguentassem e a água do canal São Gonçalo invadisse a área urbana da cidade. O mapeamento foi apresentado à prefeita Paula Mascarenhas (PSDB), que decidiu recomendar a evacuação de áreas de risco. A previsão foi coerente, mas o nível máximo ficou em 3,13m, 17 centímetros abaixo do imaginado.

Os diques resistiram, mas algumas áreas foram duramente afetadas. Para Tamara, o momento mais angustiante foi quando perceberam o risco real de uma tragédia urbana caso o sistema falhasse. “Quando percebemos que existia a possibilidade de a cota dos diques ser superada, tivemos uma sensação de angústia muito grande, pois nós estávamos de posse daquela informação”, ela relata.

Previsões meteorológicas

O impacto das previsões do tempo e das mudanças na direção do vento nos prognósticos também preocupava os agentes da Sala de Situação. O meteorologista do Centro de Pesquisas e Previsões Meteorológicas (CPPMet), Henrique Repinaldo, integrante da equipe de monitoramento, participou de todas as reuniões multidisciplinares. Para ele, o principal desafio foi estar mobilizado por horas a fio. “Praticamente, a gente ficou dedicado 24 horas àquela situação”, destaca.

Além de estar na linha de frente quanto ao monitoramento da situação, Repinaldo também foi uma vítima da cheia. Morador do Laranjal, ele precisou conciliar a vida profissional enquanto sua casa era afetada pela inundação. “Ao mesmo tempo que eu estava trabalhando com as previsões em reuniões, também estava evacuando a minha residência, tentando acomodar a minha família”, recorda.

Cuidado com a comunicação

Repinaldo também enfatiza o zelo com as informações durante a crise, para evitar pânico. Com a abertura das salas à imprensa, foi possível transmitir informações de forma mais clara e realista, o que ajudou no combate a boatos — como a falsa previsão de ondas de dez metros. Por fim, ele elogia a postura e clareza da prefeita Paula nas transmissões ao vivo, traduzindo as informações técnicas para uma linguagem acessível à população.

Solidariedade

Enquanto a sala de situação trabalhava para coordenar esforços e mitigar os impactos da enchente, um outro movimento espontâneo e essencial ganhava forma: o voluntariado. Em meio ao caos e à incerteza, cidadãos se mobilizaram para ajudar naquilo que fosse necessário, desde o acolhimento de pessoas desabrigadas até o resgate e cuidado de animais.

Acolhimento e desafios

Nos abrigos espalhados por Pelotas, a solidariedade era a principal ferramenta para enfrentar a crise. Carolina Soares, estudante de jornalismo e voluntária no abrigo da AABB, descreve as dificuldades do início da operação, quando a falta de informações centralizadas dificultava a organização.

O fluxo de voluntários também variou ao longo do tempo. Segundo Carolina, nos primeiros dias a disposição para ajudar era grande, com muitos interessados em contribuir, mas a continuidade do trabalho exigia pessoas dispostas a permanecer por turnos mais longos. “No início, tinha muita gente querendo ajudar, e depois quase ninguém”, explica.

Ela também destaca a necessidade emocional dos abrigados. Além de alimentação e cuidados básicos, muitos precisavam de um ombro amigo, alguém que estivesse disposto a ouvir e oferecer palavras de conforto. “As pessoas eram muito agradecidas e mantinham a esperança, mesmo sem saber quando poderiam voltar para casa”, conta.

Outros voluntários auxiliaram os atingidos a subir os móveis e sair das casas. Esse foi o caso do engenheiro de computação, Gustavo Iribarrem. O trabalho começou de maneira espontânea, com ele e amigos auxiliando na organização de doações na Paróquia Santo Antônio, mas rapidamente se transformou em uma atuação direta no socorro às famílias afetadas. “A água começou a subir devagar e deu tempo para muitas pessoas se organizarem. Mas vimos idosos e famílias desesperadas tentando salvar móveis e pertences, então passamos de casa em casa oferecendo ajuda”, relembra. O trabalho voluntário trouxe desafios, mas também um sentimento de alívio por poder oferecer apoio em meio ao caos. “Nem todo mundo pode parar de trabalhar para ajudar, então fico feliz de ter conseguido fazer um pouco”, conclui.

A solidariedade também se manifestou em iniciativas já organizadas. Em uma das casas de retiro dos movimentos da Igreja Católica, foi montado um abrigo para crianças neuroatípicas coordenado pela prefeitura e que contava com o auxílio dos voluntários dos próprios movimentos que utilizam a casa. “No início, não sabíamos exatamente qual seria a demanda, mas, quando surgiu a necessidade de um espaço para crianças neuro divergentes, reunimos a comunidade e organizamos tudo em questão de um dia”, conta Neto, presidente do Emaús na época. O movimento assumiu funções essenciais, como preparar refeições e gerir um centro de distribuição, garantindo que os pequenos recebessem todo o suporte necessário.

O resgate e abrigo de animais

Os impactos da enchente também atingiram os animais e diversos voluntários se mobilizaram para resgatá-los e garantir um espaço seguro. Nesse momento os estádios que se enchiam de torcedores apaixonados se transformaram em abrigos improvisados. O Bento Freitas, a Boca do Lobo e o Nicolau Fico foram casa para centenas de cães, gatos e até animais menores como coelhos e passarinhos.

O Xaumigos, abrigo de pets do Xavante, surgiu da necessidade de encontrar um local adequado para os animais, já que o espaço anterior onde estavam se tornou insalubre. Nadine Castro, coordenadora do abrigo, destaca a importância do engajamento da comunidade na manutenção do espaço. “Se não fosse a comunidade, os abrigos não teriam existido”, afirma. Segundo ela, a prefeitura teve pouca participação na manutenção do abrigo, sendo a população responsável por garantir alimentação, cuidados veterinários e condições mínimas de higiene para os animais resgatados.

Situação semelhante ocorreu na Boca do Lobo, onde a demanda inicial foi muito maior do que o esperado. Lucas Rhamon Carvalho, assessor de imprensa do clube, recorda que o abrigo surgiu de maneira improvisada e, com a rápida divulgação da iniciativa nas redes sociais, o número de animais recebidos superou as expectativas. “Em questão de meia hora, chegaram muitos cachorros. (…) As pessoas simplesmente deixavam os animais lá, sem cadastro”, relembra.

Histórias marcantes surgiram desse período. Entre elas, a de Athena, uma cadelinha resgatada e posteriormente adotada pelo Pelotas, que passou a viver na Boca do Lobo e se tornou mascote do time. “Athena foi abandonada três vezes durante esse processo, mas no final, encontrou seu lar. Hoje, ela é a rainha da Boca do Lobo”, conta Lucas.

No Nicolau Fico, ficaram abrigados 87 cães. Adriana Costa, presidente do clube, salienta que o apoio da comunidade foi fundamental para fornecer ração, cobertores, medicamentos e cuidados veterinários. “A logística foi intensa, desde a limpeza constante do local até a alimentação e o bem-estar de cada animal. Mas ver esses cães seguros e bem cuidados nos deu a certeza de que todo esforço valeu a pena”.

União entre voluntários e especialistas

O Projeto Drenar RS surgiu como uma resposta emergencial à devastação pelas águas, unindo esforços voluntários para atuar na drenagem das áreas alagadas. Criado por um grupo de produtores rurais, empresários e especialistas em irrigação, o projeto utilizou bombas de drenagem originalmente destinadas à lavoura de arroz para retirar grandes volumes de água e proteger áreas urbanas ameaçadas.

Fabrício Iribarrem, engenheiro e advogado, fez parte do projeto em Pelotas e destaca que os desafios técnicos eram enormes devido à falta de planejamento inicial e à ausência de recursos disponíveis. “Os desafios iam surgindo, e precisávamos entender e planejar soluções em curto prazo”, explica. A experiência reforçou a importância da colaboração entre setor público e privado em momentos de emergência. “Nem público nem privado têm soluções sozinhos, ambos precisam trabalhar lado a lado”, enfatiza Fabrício.

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